quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Volta Priscila


 O documentário em quatro episódios do Disney Plus traz de volta à tona um dos mais impactantes casos de desaparecimento registrados na mídia brasileira até hoje, com o bônus de entregar algumas revelações até àqueles que se julgavam informados de todos os percalços ocorridos na época, fruto certamente do empenho dos realizadores e do notável trabalho de pesquisa histórica e investigativa engendrado por eles: Vemos depoimentos de familiares e envolvidos no caso (de investigadores até repórteres), pessoas próximas, notas da imprensa, trechos de telejornais e programas do período, além muitas fotos, videos caseiros e dramatizações.

No dia 9 de janeiro de 2004, a jovem Priscila Belfort, irmã do lutador de MMA Victor Belfort, saiu de seu trabalho, no prédio da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer, no centro do Rio de Janeiro, para a hora do almoço e nunca mais foi vista. Aflita, a família imediatamente iniciou uma busca conforme o avançar das horas foi tornando ainda mais preocupante o sumiço de Priscila, uma moça, segundo todos que a conheceram, sem qualquer traço de rebeldia ou de imprevisibilidade. Assim que o desaparecimento completou suas usuais 24 horas, a polícia foi chamada e, logo em seguida, a decisão de reportar tudo massivamente à mídia foi tomada –usando em favor da investigação o enorme apelo popular de Victor Belfort e de sua esposa, Joana Prado, a Feiticeira do Programa “H” da Band. Quando logo a possibilidade de um sequestro foi ventilada, a Divisão Anti-Sequestro do Rio de Janeiro, o DAS, foi acionado.

Em seu primeiro episódio, o documentário esmiúça as primeiras impressões sobre o ocorrido. A dor inapelável que se abateu sobre a família –e que tornou-se insuportável a medida que os anos foram se passando. As investigações obstruídas por denúncias falsas de pessoas que telefonavam para a polícia de todos os cantos do Brasil afirmando terem visto ou saberem de algum fato crucial acerca de Priscila Belfort, o que fomentou o caso como uma espécie de lenda urbana emergente, mas prejudicou e muito o já claudicante trabalho da polícia carioca. E a reação a um só tempo solícita e sensacionalista dos programas de TV daqueles tempos –a apresentadora Sônia Abrão relembra os comunicados impactantes que se sucederam e o apresentador Gilberto Barros relata que chegou a acrescentar mais 10 mil reais à recompensa por informações de iniciais 5 mil reais que foi divulgada, ele também participou de um esforço ao vivo (mostrado em filmagens da época) onde fez um apelo em rede nacional para que alguém munido de informações entrasse em contato com a rede de TV.

O segundo episódio concentra-se em duas situações que pareceram apontar para alguma esperança de resolução: A primeira, quando um traficante chamado Gerinho, notório praticante de sequestros-relâmpagos, afirma para um refém ter sido responsável pelo fim de Priscila (verdade ou bravata?); quando tal refém escapa e leva essa informação ao DAS, as investigações, transcorridas por quase três anos, levam a polícia a uma incursão no Morro da Providência, favela onde Gerinho teria se refugiado –no entanto, somente um de seus cúmplices (que alega não saber nada) é preso –e, mais tarde, quando uma pista real do paradeiro de Gerinho aparece, no Complexo do Alemão, o resultado acaba sendo uma caótica invasão policial convertida em zona de guerra, durante a qual Gerinho acaba fulminado por um tiro de fuzil, levando com ele todas as respostas que poderia ter fornecido ao mistério. A segunda situação envolve o depoimento de Elaine Paiva que, em 2007, entregou-se ao Ministério Público alegando ter matado Priscila e enterrado o corpo num terreno abandonado em São Gonçalo. As incoerências logo percebidas pelo delegado nos subsequentes relatórios feitos por Elaine e os resultados infrutíferos das escavações no terreno, que não encontraram indícios de restos humanos, levaram Elaine a admitir que seu relato era mentiroso, tendo servido apenas para atrapalhar ainda mais o avanço das investigações.

O terceiro episódio procura jogar luz na trajetória pregressa da própria Priscila, mostrando suas desilusões e os percalços que a levaram à depressão (o divórcio do pais, a cobrança paterna, a desoladora viagem de intercâmbio que fez aos EUA) em paralelo com a ascensão de Victor no mundo do MMA.

O quarto e último episódio ilustra o efeito esmagador, ao longo de vinte anos, que o desaparecimento de Priscila teve sobre a família (sobretudo, em Jovita, a mãe), e suas tentativas existenciais de conciliar a retomada da vida com sua ausência impreenchível. Ao fim, é exposta também uma última e bastante plausível teoria sobre o seu desaparecimento –e um tanto controversa na medida em que aponta para a impunidade de uma família politicamente poderosa do Rio de Janeiro, cujo nome, aliás, não pôde ser citado por ninguém no documentário. Entretanto, a nota com a qual esta obra dirigida por Eduardo Rajabally e Bruna Rodrigues realmente se encerra é de caráter íntimo: Ao fim do resgate minucioso, impactante e profundamente tocante de todos os percalços vividos pela Família Belfort nesses vinte anos que separam o sumiço de Priscila da realização deste filme, nós, expectadores, somos tornados parte da aflição deles. Como eles, passamos a conhecer Priscila, a ter empatia por ela, e a compartilhar a dor incerta por seu desfecho ainda em aberto. Uma emoção poderosa e irrestrita com a qual este documentário magistral termina deixando o público.

Nenhum comentário:

Postar um comentário