sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Navalha Na Carne


 A peça de Plínio Marcos, escrita em 1966, bem como seu comentário sobre a desigualdade social e a exploração humana nos subúrbios cariocas (na infância, Plínio Marcos conviveu com o submundo do porto de Santos), era de fato muito mais eficaz e funcional no teatro, ambiente para a qual foi originalmente criada. Pode-se apontar o dedo com facilidade para o diretor Neville D’Almeida que –como lhe é de praxe –preferiu extrair do texto muito do seu caráter de denúncia, para focar em questões mais filosóficas, bem pouco óbvias, e outras mais mundanas –tanto que algumas passagens se convertem em desvarios nada palatáveis que só fortalecem o teor grotesco do filme –enfatizando com isso seu estilo irrequieto e inconsistente para retratar o mundo cão, no qual o grande ponto de destaque é a presença (e a magnífica nudez sucessivamente explorada) da atriz Vera Fischer, então no auge da beleza e da gostosura daqueles anos 1990 de então.

Na trama, o cafetão Vado (Jorge Perugorría, do sucesso cubano “Morango & Chocolate”, tenebroso com seu sotaque!) invade numa madrugada o quarto da prostituta sob seus cuidados, Neusa Suely (Vera Fischer, boa atriz, ainda que dona de um glamour próprio que não condiz com a marginalidade da personagem). Vado quer que Neusa lhe entregue o ‘lucro da noite’, no entanto, o dinheiro desapareceu. A fim de livrar-se das acusações de Vado, Neusa acusa o vizinho homossexual Veludo (Carlos Loffler, de “Feliz Ano Velho”) do roubo. E está estabelecida assim uma ciranda de tragédia que conduzirá esses três personagens madrugada adentro em direção à uma desforra que consumirá a todos eles.

Adaptado para o contexto cinematográfico experimentado pelo Brasil na década de 1990 –período que marcou o movimento da Retomada, quando a produção cinematográfica brasileira foi interrompida no início da década com a extinção da Embrafilme e as realizações de cinema começaram, gradual e timidamente, a ressurgir amparadas em técnicas mambembes, improvisadas e nas chamadas ‘filmagens de guerrilha’ –este “Navalha Na Carne” incorpora uma certa vulgaridade oriunda do cinema nacional da década anterior (da qual seus pares buscaram se afastar) e se mostra apolítico em sua alienação estética e artística, fruto das pretensões underground modernosas do diretor que dificilmente escapam de um viés bizarro em muitos de seus filmes –o ápice dessa encenação absurdista (e da admirável capacidade do diretor em convencer bons atores a personificar as ideias vexatórias que brotam em sua mente) é a sequência em que a própria Neusa Suely se transfigura numa versão feminina de Jesus Cristo, com direito à cena de crucificação e tudo! Ainda assim, a maior referência de algum engajamento político aqui se identifica numa camiseta estampada com o rosto de Che Guevara da personagem de Vera Fischer (!).

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