domingo, 17 de agosto de 2025

O Bar Luva Dourada


 Existem filmes que não são feitas para deleitar o expectador. São obras corrosivas, desconfortáveis, incômodas e, não raro, perturbadoras –nem por isso, elas devem ser consideradas obras ruins. Alguns desses exemplares, em sua maestria do retrato de certos aspectos do mundo-cão, beiram a genialidade. A produção alemã “Der Goldene Handschuh” –ou “O Bar Luva Dourada” –dirigido por Fatih Akin, e lançado em 2019, é um desses filmes.

Nele, somos testemunhas do dia-a-dia sinistro e degradante de Fritz Honka (Jonas Dassler, irreconhecível por trás de uma densa e amedrontadora maquiagem), morador da cidade de Hamburgo, na Alemanha, um cidadão de classe média-baixa de meados dos anos 1970, e também um serial-killer cuja natureza macabra, na vida real, só foi descoberta por puro acaso –quando um incêndio, num apartamento ao lado do seu, revelou quatro cadáveres que ele ocultou em um alçapão! Na cena em que somos apresentados a ele, Honka já tratou de matar –uma das tantas mulheres desamparadas, perdidas e sem perspectivas que ele encontrava naquela desolada Alemanha de então –e, ao tentar desovar o corpo para fora de seu apertado apartamento, é quase flagrado por uma garotinha. Honka hesita, e volta. E assim, dá início ao hábito hediondo que o filme de Fatih Akin haverá de registrar até seu desfecho.

Por mais improvável que pudesse parecer (e a impiedosa vida real é repleta de ocorrências tão terríveis quanto improváveis), Honka obtinha vítimas com relativa facilidade e incontornável impunidade: Seu local de caça era o Bar Luva Dourada, no subúrbio de St. Pauli, que ele frequentava junto de outros homens igualmente asquerosos e sujos. Lá, Honka encontrava mulheres desiludidas o suficiente para acompanhá-lo até sua fétida morada.

Eram mendigas, idosas, sobreviventes do holocausto, muitas delas alcóolatras e prostitutas.

Honka tentava relacionar-se com elas, no entanto, impotente, terminava sempre fazendo delas o pivô de sua insaciável frustração.

Uma delas, vivida por Margarethe Tiesel, consegue ficar morando com ele durante alguns dias (protelando sua raiva com a promessa um tanto vazia de que trará sua filha para fazer-lhes companhia), contudo, quando a sanha e a injúria de Honka já estavam prestes a culminar na combinação mortal que sempre resultava em assassinato, ela tem a sorte de escapar com um outro pretendente de última hora.

Há um certo ponto do filme em que Honka até busca afastar-se de seus instintos homicidas. Ele deixe de frequentar o Luva Dourada. Ele arruma um emprego (de vigia noturno). E para de beber. As mortes cessam por um tempo. Entretanto, quando Honka conhece um casal de nômades boêmios que passa a usar seu posto como ponto de encontro para bebedeiras (e acaba se apaixonando pela mulher), sua fúria retorna.

Há, na narrativa de Akin, uma personagem quase paralela à Honka, uma jovem (interpretada pela bela Greta Sophie Schmidt), que o filme nos parece sugerir que será uma das vítimas do assassino –inclusive protagonizando alguns devaneios dele, onde aparece comendo a carne crua de um açougue! –ela é a única personagem de todo o longa-metragem a ser mostrada como incondicionalmente bela, a única a qual é resguardada uma aura de fascínio cinematográfico de fato em oposição à podridão que a cerca –a progressão natural da aproximação entre ela e Honka é um dos pontos de crescente tensão desta obra profundamente incômoda e desconfortável.

“Der Goldene Handschuh” retrata assim as consequências sociais e emocionais flagradas em uma Alemanha devastada pela derrota em duas Guerras Mundias, ao mesmo tempo em que presta tributo a um cinema de predisposições sensoriais que aflorou nos anos 1970, na intenção de retratar essa mesma desilusão, essa mesma falta de propósito –não por acaso, a obra de Akin lembra simultaneamente os cult-movies, “A Ternura dos Lobos”, de Ulli Lommel (do qual Rainer Werner Fassbinder se incumbiu da montagem), lançado em 1973, e “M-O Vampiro de Düsseldorf”, de Fritz Lang, de 1931.

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