segunda-feira, 26 de março de 2018

Aniquilação

Mais um grande trabalho do roteirista tornado diretor Alex Garland, uma vez mais discorrendo com brilho sobre um tema de ficção científica, a exemplo do que ele fez em sua obra anterior, “Ex-MachinaInstinto Artificial”.
“Aniquiliação” –que ao invés do cinema foi direto para o Netflix –estreita ainda mais as proximidades de sua realização com um cinema hermético, menos interessado na ação e na pirotecnia e mais em inquietações de ordem intima. E isso se nota, antes de tudo, na influência maior que este filme tem (e, com certeza, também o livro de onde foi adaptado) que é indisfarçavelmente “Stalker”, de Andrei Tarkovski.
Como naquela obra primorosa e desafiadora, surge na Terra um lugar cercado de mistério e de possibilidades frequentemente ilimitadas.
Se em “Stalker” esse lugar era ‘A Zona’ –personificada nos escombros de Chernobyl –em “Aniquilação”, tal região fica em algum lugar do litoral norte-americano onde um asteróide caiu, transformando desde então todo o ambiente. A região passou a ser designada como ‘Área X’ e a estranha e etérea nódoa que surgiu no lugar, chamada ‘O Brilho’, não deixa muitas dúvidas de que lá operam energias alienígenas.
Três anos depois, a ‘Área X’ continua um incômodo mistério para os cientistas da Terra.
A bióloga Lena (Natalie Portman, ótima) também nutre suas aflições relativas ao lugar, mas dizem respeito a outro detalhe: Seu marido, Kane (Oscar Isaacs) foi enviado para lá em uma operação militar a um ano, sem mandar notícias.
Quando Kane reaparece, todos os indícios que ele apresenta indicam que não é mais o mesmo –o tenso e nebuloso diálogo na mesa da cozinha já dá a referência-mor do filme com um close em um copo cheio de água (o elemento onipresente na encenação de “Stalker”).
Lena consegue tirar muito pouco dele: Logo, Kane está agonizando em um hospital militar, sofrendo de falência múltipla de órgãos.
O quê aconteceu a ele durante todo o tempo em que esteve na ‘Área X’? Por que ele foi, dentre todos, o único que voltou?
São as perguntas que a Dra. Ventress (Jennifer Jason Leight), ao lado de Lena, mais quer responder.
A narrativa de Garland (que leu o livro há muitos anos atrás, e não o releu para escrever o roteiro o quê dá ao filme uma atmosfera dúbia e inconclusa de sonho) já antecipa algumas perspectivas ao expectador: Quando o filme se inicia, Lena presta um depoimento a uma equipe de cientistas (entre eles, Benedict Wong, de “Doutor Estranho”); ela foi a única (assim como Kane) a regressar da ‘Área X’. Pressupõe-se assim que algo ocorreu às outras que, descobriremos mais à frente, integram uma equipe de cinco e são –além de Lena e a Dra. Ventress –as pesquisadoras Josie Radek (Tessa Thompson, de “Thor-Ragnarok”) e Cass Sheppard (Tuva Novotny), e a militar Anya Thorensen (Gina Rodriguez).
Desprovido da pressa e da urgência impaciente que impregna tantas outras produções norte-americanas, o filme acompanha, quase a adentrar seu segundo terço, o grupo de cinco mulheres invadir a ‘Área X’ e, nos dias estranhos que se seguem, testemunhar as conseqüências e os efeitos que o lugar passa a lhes infligir.
De início, o tempo transcorre de maneira imprevista. Mais a frente, a fauna do lugar começa a fornecer pistas mais contundentes (e preocupantes) de que uma força irreversível está operando naquele lugar; e, com efeito, ela se traduz em perigos que vão tragando-as uma a uma. Quando fica evidente um certo perigo, voltar ou prosseguir são alternativas que, dada a situação delas, não fazem muita diferença à suas perspectivas de sobrevivência.
Em “Stalker”, Tarkovski impõe uma reflexão de ordem metafísica esmagadoramente intimista em relação aos propósitos e desdobramentos do poder que se supõe existir lá, já em “Aniquilação”, o diretor Garland habilmente abre espaço aos efeitos visuais e a outros valores de produção para que se crie, com incontornável densidade, a sensação de se estar entrando num lugar de implicações imprevisíveis.
Mas, ele nunca esquece Tarkovski: Na atmosfera que se cria (e que se mantém até o fim) cujo estranhamento e a desolação quase sufocam o expectador, na umidade que ele reitera ocasionalmente e na decisão corajosa de jamais se render a um gênero fácil –ação, suspense ou mesmo terror –ele concebe uma obra feita para acompanhar o expectador, muito tempo depois que a trama tiver se acabado.

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