segunda-feira, 4 de março de 2019

Longe do Paraíso

“Logo além do pecado, se encontra um mundo encantado”
Era inevitável a constatação de que o cinema de Todd Haynes, atento ao contraponto entre a normalidade das superfícies e o caos das profundezas, se ombreasse de alguma forma, à obra de Douglas Sirk, o diretor norte-americano que dedicou seu olhar à expor com forte melodrama as condenações implícitas da sociedade nos anos 1950.
Ao emular Sirk em “Longe do Paraíso”, Todd Haynes leva sobre ele a vantagem de pertencer ao presente, e com isso ter liberdade autoral para tratar abertamente de temas que na filmografia exigidamente discreta dele seriam completamente velados e absolutamente sugeridos, tais como o homossexualismo.
A vida de Cathy Whitaker (Julianne Moore, tão maravilhosa quanto na primeira colaboração com Haynes, “À Salvo”) aparenta ser imaculada –e tal perfeccionismo a leva a ilustrar capas de notícias enaltecendo sua vizinhança.
Entretanto, o filme de Haynes não tarda a revelar fissuras em meio à suposta perfeição. O marido de Cathy, Frank (Dennis Quaid, excelente) é ausente, cria justificativas tolas para não voltar para casa e, em instantes tratados com elegante elipse, Haynes vai deixando claro que algo está errado na harmonia do lar.
Num flagra tão doloroso quanto desconcertante, Cathy descobre o porquê: Frank é homossexual e muitas vezes não consegue conter seu ímpeto para buscar outros parceiros noite afora.
Ainda assim, ele tem consciência de que muita coisa depende da fachada de perfeição erguida em seu lar: Sua família (composta também por um casal de filhos pequenos e carentes de atenção paterna); seu emprego e, por consequência, seu futuro.
Frank se dispõe a submeter-se a todos os procedimentos médicos e psiquiátricos que supostamente poderiam tratar esse comportamento, como bem sinalizava a ciência dos anos 1950 de então, por meio do prisma preconceituoso da época.
No entanto, embora seja Frank e seu tormento o gatilho narrativo para as mudanças da premissa, é em Cathy que o eixo dramático de fato se concentra, pois, embora não seja ela o pivô de todo o drama, é ela quem sofre as mais injustas e indiretas consequências –e Haynes demonstra sua compaixão pela protagonista evidenciando a intensa e crescente tristeza nas circunstância que ela experimenta: Deixada de lado pelo marido, esmagada pelas obrigações e afazeres domésticos e sufocada pela necessidade de aparentar felicidade (quando, na verdade, por dentro desatina), ela encontra um consolo inesperado na amizade com Raymond (Dennis Haysbert), seu jardineiro negro.
A relação, definida por carência da parte dela e fascínio evidente da parte dele, progride inevitavelmente para um interesse romântico que as imposições não permitem que deixe de ser platônico –o que não impede que as fofocas resultantes dos menores gestos e dos mais inocentes indícios coloquem Cathy em maus lençóis junto da desumana concepção de sua comunidade.
Ao fim, Haynes ratifica mais do que apenas o drama: Ele mostra que, mesmo tendo sido Frank o transgressor por natureza, por assim dizer, foi Cathy quem teve de sofrer todos os revezes.
Mais do que um louvável retrato do homossexualismo em meio à um âmbito de considerações totalitárias (algo que Todd Haynes concretizou com “Carol”), “Longe do Paraíso” é um comentário sutil e inteligente sobre o papel sempre desfavorável da mulher nas injustas crises sociais.

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