quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A Traição

Apesar deste trabalho do diretor Tokuzo Tanaka partir de uma produção da Daiei e, portanto, ser em tese de orientação comercial, a realização exerce uma série de escolhas de cunho autoral, o que agrega ao filme um valor incomum.
Os clãs Minazuki e Iwashiro se opõem desde sempre. Quando a trama se inicia, é um valentão provocador quem vemos tentar afrontar o clã Minazuki.
Não funciona e ele parte à cavalo com suas bravatas. Mas, eis que se cruza com dois jovens rivais na estrada e, de uma implicância sem sentido, ocorre um assassinato.
O clã Iwashiro, ao qual pertencia o morto, fica ultrajado com a evidência do ferimento mortal: A morte deu-se por um ataque feito pelas costas.
A honra de ambos os clãs está em jogo graças às características de engessado orgulho do código samurai –uma rusga banal vai tomando proporções apoteóticas. E tamanha é a necessidade de denúncia do diretor desses pormenores nocivos da honra excessiva que, em seu enredo, ele sequer se importa com o assassino real: Não há qualquer esforço para se fazer algum mistério em torno de sua identidade (um garoto tão inconsequente quanto o provocador) e ele é completamento esquecido a partir de um determinado ponto.
Aliás, o culpado em questão é um jovem pelo qual o chefe do clã Minazuki se compadece: É o último descendente de sua família. Motivo que o ancião enxerga para poupá-lo de qualquer forma. Nem que para isso, por meio de um estratagema mal-fadado e mal-planejado, ele precise jogar a suspeita, por algum tempo, sobre o nobre Takuma (Raizô Ichikawa), seu futuro genro, com quem sua própria filha, Namie (Shiho Fujimura) vai se casar.
Eis o plano: Takuma se afasta do vilarejo por cerca de um ano –e seu afastamento já será o suficiente para jogar a suspeita do assassinato sobre si –e durante esse tempo, o chefe intercederá por ele, deixando que o clamor popular em torno do assunto se esfrie, até que Takuma possa voltar.
Quando um ano inteiro de provações se passa, Takuma até tenta um retorno para o vilarejo, mas tem uma terrível surpresa: O chefe em quem confiou morreu subitamente de velhice e o único capaz de confirmar sua inocência, o samurai Jurota (Ichiro Nakatani), revelou-se um traidor disposto a coloca-lo sob o encalço dos dois clãs apenas para poder desposar Namie à força.
Na gramática dramatúrgica que rege os filmes de samurais (os chamados Chambara), a intriga que move o plot até se constrói, mas não se desconstrói: A medida que as condições se afunilam em torno do perplexo Takuma, as chances de ter sua inocência restabelecida vão minguando uma a uma lhe restando somente a alternativa de fugir e lutar.
E, de fato, numa orquestra primorosa de drama e ação, não há nada tão ruim que não fique pior: Perseguido pelo clã outrora aliado e pelo rival, Takuma tem de se aliar ao mesmo ladrão inescrupuloso que o roubou no começo; a única pessoa a lhe prestar alguma ajuda, a camponesa Shino (Kaoru Yachigusa), tem um amargo fim nas lâminas de dois samurais abusadores e covardes; com efeito, a própria Namie, convicta em apoiar o injustiçado Takuma se torna também uma pária, o que a relega à prostituição.
Moldado por desventuras radicais a pesar sobre seus protagonistas, o filme de Tokuzo Tanaka marca seu andamento dramático a partir dos confrontos, que num determinado ponto começam a se tornar cada vez mais sucessivos e simultâneos, até culminar numa das cenas de embate mais longas e bem executadas de todo o gênero –uma crise em cujo desfecho se evidencia a destruição de ambos os clãs, Minazuki e Iwashiro, engatilhada pelo mais irrisório dos pretextos.
Por meio dessa premissa, esta obra de Tokuzo Tanaka se posiciona como uma contundente crítica a questionar a postura samurai perante ocasiões onde os conceitos de justifiça podem ser embaralhos por uma dinâmica escorregadia entre honra coletiva e individual e pelas imprecisões do senso comum, e ele lança mão de um enredo verdadeiramente notável para fazer valer seu questionamento.

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