terça-feira, 3 de setembro de 2019

Era Uma Vez... Em Hollywood

Representa uma espécie de marco temático na carreira de Quentin Tarantino o épico de guerra “Bastardos Inglórios”: Ele não somente era um passo além nas tramas atrevidas e rocambolescas que ele urgia, como também representou uma prova cabal perante a indústria da qualidade de seu realizador, tão emaranhado em projetos anteriores que resgatavam a essência dos filmes B (“Kill Bill Vol. 1 e 2”, “A Prova de Morte” do “Projeto Grindhouse”) que muitos começavam a achar que eram filmes B que Tarantino passaria então a fazer.
Ao conceber aquele que promete ser um de seus últimos trabalhos antes de sua aposentadoria (ele afirma que irá parar em dez longa-metragens), Tarantino realiza aqui um compêndio de sua paixão e de sua compreensão de cinema amparado numa estrutura que, seja em sua minúcia ou em sua amplitude, remete à “Bastardos Inglórios”.
Situado no ano de 1969, “Era Uma Vez... Em Hollywood” já denota certa desconstrução daquilo que Tarantino habituou o público ao exibir um trabalho de absoluta clareza e nitidez em sua direção de fotografia (a cargo de Robert Richardson) –não é intenção dele, desta vez, recriar a impressão dos filmes feitos naquele período, como ele o fez com os filtros empoirados e envelhecidos de “A Prova de Morte”; aqui, Tarantino quer recriar a impressão de se estar naquele período, a acompanhar lado a lado a trajetória de seus três maravilhosos protagonistas, o ator Rick Dalton (Leonardo Dicaprio), o dublê Cliff Booth (Brad Pitt) e a atriz Sharon Tate (Margot Robie).
Rick foi astro de uma série televisiva de faroeste –e, desde então, seu dublê, Cliff trabalha como seu braço direito e ‘faz tudo’, inclusive como seu motorista –entretanto, ele apostou tudo numa tentativa de emplacar como astro de cinema. Algo que, num diálogo ocorrido em uma das primeiras cenas, o diretor vivido por Al Pacino deixará bem claro que está cada vez mais longe de acontecer: Como no estupendo diálogo inicial entre o Coronel Hans Landa e o fazendeiro francês em “Bastardos...”, o diálogo entre Pacino e Dicaprio começa amistoso, cheio de frivolidade, contudo, mestre da escrita que é, Tarantino usa os elementos da dinâmica para distorcer sua condução e transformar a gentileza em crueldade (sem, no entanto, fazer parecer que deixou de ser gentileza).
Para Rick Dalton, o fracasso sinaliza com os papéis de vilões a que ele parece restringido e às oportunidades, que ele considera pouco lisonjeiras, para fazer faroestes na Itália (com Sergio Corbucci!).
Nesse ínterim, Cliff acompanha o amigo, pairando com a máxima descontração possível sobre os dramas do showbuziness, sem deixar de ser ocasionalmente afetado por um ou outro: Apesar da atitude boa praça, corre o boato de Cliff ter assassinado a própria esposa (trecho que Tarantino revela num audacioso flashback dentro de um flashback), e também a famigerada história do arranca-rabo que ele arranjou com Bruce Lee em pessoa (vivido de forma assoberbadamente caricatural por Mike Moh).
Já, Sharon Tate –a única personagem real dentre os protagonistas –é um caso à parte. Ela tem pouco diálogos, e mesmo sua presença nos planos de câmera é rápida demais para podermos contemplar o suficente a adequação inebriante de Margot Robie ao papel (que, diga-se de passagem, está fabulosa). Ela paira, etérea, pelas cenas do filme como se tivesse vida demais para todo aquele restante de intriga urbana que Tarantino materializa. Sua cena mais longa é também uma das mais memoráveis do filme: Quando ela entra num cinema exibindo “Matt Helm Contra A Arma Secreta” não para ver o filme, mas para se deliciar anonimamente com as reações do público à sua participação.
“Era Uma Vez... Em Hollywood” é assim uma amostra notável desse gênio que manipula as engrenagens da narrativa cinematográfica como poucos, contudo, Tarantino não está só em sua excelência. Após ganhar um merecidíssimo Oscar de Melhor Ator por “O Regresso”, Dicaprio prova que nem por isso deixou de ser formidável –seu Rick Dalton é engraçado, passional e vulnerável, equilibrando facetas tão bem trabalhadas e estudadas como os cacoetes de quando se vê constrangido ou as inseguranças de quando se vê testado.
 Também ele sensacional (ainda que num personagem não tão complexo), Brad Pitt reina supremo em pelo menos duas das melhores cenas de todo o longa (talvez, duas das melhores cenas do ano!): A primeira, quando uma carona nada inocente a uma hippie ninfeta o leva até uma comunidade alternativa gerenciada por ninguém menos que Charles Mason. O suspense que Tarantino impõe nessa sequência é de uma execução genial no entendimento absoluto dos códigos que dilatam e comprimem a narrativa.
A segunda, se dá já no retumbante trecho final do filme, e é preciso –por conta dela –lembrar que, talvez, aqueles expectadores que entrarem no cinema ignorantes da história real envolvendo a atriz Sharon Tate e seu marido, o diretor Roman Polanski, podem não ficar tão impactados com o clímax, ou nem tampouco, entender a desconfiguração de realidade que o filme promove: Como em “Bastardos Inglórios”, Tarantino não resiste, nessa parte final, à tentação de reescrever a história. E ele o faz com tal convicção raivosa que transforma essa cena em uma catarse.
Este é um filme de detalhes que parecem aleatórios em primeira mão, mas que haverão de se mostrar –sobretudo nesse desfecho magistral –serem estratégias plantadas com astúcia quando tudo se fundir num só empuxo narrativo.
Deixem eu deslumbrar-me com “Era Uma Vez... Em Hollywood”, porque ele é um filme deslumbrante.

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