O diretor Abel Ferrara conta que uma das
inspirações para um de seus mais famosos filmes partiu de –pasmem! –“O Exterminador do Futuro” (!). De alguma forma, Ferrara foi capturado pelo
fascínio por personagens que eram capazes de sair atirando a esmo em um
ambiente urbano e social; uma violência que ignorava quaisquer convenções.
Todavia, acabam aí as similaridades –o cinema
de Abel Ferrara sempre esteve mais para Martin Scorsese do que para James
Cameron.
Assim, na fantasia crua e violenta concebida
pelas mentes de Ferrara e de seu roteirista de confiança, Nicholas St. John, o
personagem que surge para tumultuar a normalidade não é um andróide vindo do
futuro, mas um gangster vindo de um longo período na cadeia: Frank White (o
personagem de Christopher Walken) é menos inspirado na ficção científica e mais
no mafioso nova-iorquino verídico John Gotti.
Ferrara é categórico em afirmar que “O Rei de
Nova York” é calcado em elementos fantasiosos –embora, muitos expectadores
considerem seu excesso de violência, sua tensão exasperante e seu
aprofundamento em meandros políticos como reflexos de realidade.
No decurso da jornada que aparenta ter
planejado para si desde o início, Frank já pisa nas ruas de Nova York com seu
plano em progresso.
Ele almeja descartar os chefes de gangues
anteriores a ele –os italianos, os latinos e os chineses –para assumir o
controle total das ruas e do tráfico de drogas com o auxílio dos negros; entre
eles, seu fiel capanga, Jump, vivido por Laurence Fishburne. Para tanto, Ferrara
não economiza na violência, mostrada em sua obra, como um mal que contamina a
tudo.
Se há um esboço de luta de classes na premissa
onde ele enxerga os policiais proletariados (David Caruso e Wesley Snipes,
liderados por Victor Argo) contra o emergente grã-fino Frank White cuja riqueza
provém do crime, essa analogia logo se desvanece quando os próprios policiais
sucumbem ao instinto homicida convertendo-se em vigilantes inconsequentes num
dos mais desconcertantes momentos do filme.
Esses personagens, por sinal, demonstram uma
indignação tão rasteira perante a impunidade de Frank (sobretudo, David Caruso,
bem mais afetado que os outros) que não tarda a irritar o expectador: Eles não
conseguem materializar um antagonismo sustentável o bastante para o protagonista.
Curiosamente, porém, esses eventuais lapsos não
prejudicam o desempenho primoroso da direção em conduzir um filme sobre a
deterioração criminal e moral.
Assim, a construção de cenas de Ferrara, ora caótica,
ora minimalista, obedece a uma percepção intuitiva para com a narrativa.
As considerações do diretor são tão sólidas que muitas vezes parecem surgirem
inconscientemente em suas realizações –Frank White, por exemplo, busca
inadvertidamente uma espécie de redenção católica na tentativa de construir um
hospital mesmo sem jamais abandonar a violência até a última cena.
Muito comparado ao diretor alemão F.W. Murnau
por seu uso dos enquadramentos de câmeras e iluminação, Ferrara explicita esse
paradoxo ao mostrar seus personagens assistindo ao próprio “Nosferatu” –e as
menções ao conceito de ‘vampiro’ são feitas constantemente pelos personagens e
pela narrativa, predominantemente noturna.
É perfeitamente defensável
o argumento de que o filme termina literalmente por falta de personagens,
tamanho é o volume e a intensidade de mortes ocasionadas pelos atos violentos
que se deflagram. Nesse fetiche ensandecido e superficial pela sanguinolência,
Ferrara retorna à sua inspiração original, abraçando o cinema comercial em suas
facetas mais torpes. Tal e qual, Martin Scorsese, entretanto, Abel Ferrara
vislumbra em seu trabalho as causas e efeitos existenciais, inerentes a sua
natureza católica, oferecendo vasto material para a reflexão.
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