quinta-feira, 25 de junho de 2020

A Noite dos Demônios

Do conto “A Família dos Wurdulak”, de Aleksey Konstantinovich Tolstoy, pelo menos duas obras cinematográficas de profundo cunho macabro foram extraídas, o episódio “O Wurdulak”, de “As Três Máscaras do Terror”, de Mario Bava, e este “A Noite dos Demônios”, de Giorgi Ferroni.
Diretor do conhecido faroeste spaghetti “O Dólar Furado”, Ferroni coloca um pouco de tudo em “A Noite dos Demônios”: Há uma prolongada atmosfera de terror gótico, reflexos condicionados do trash, a sanguinolência ocasional e súbita do gore, lampejos de psicologia e até algum erotismo (sobretudo, reservado à cena de delírio no trecho inicial). No entanto, o manejo experiente e equilibrado dessas facetas termina beneficiando o filme que se esquiva justamente de algumas obviedades dessas vertentes.
O enquadramento inicial, belíssimo, mostra uma paisagem bucólica e harmoniosa invadida por um intruso desolado: Nicola (Gianni Garko, um dos vários atores a encarnar “Sartana”) irrompe da floresta transtornado e machucado. No hospital psiquiátrico onde o tratam, seu médico fica intrigado com seu silêncio catatônico e com o temor crônico que ele passa a demonstrar do escuro e da noite, indicativos de que algo terrível lhe aconteceu.
De repente, a visita da bela Sdenka (Agostina Belli, da versão italiana de “Perfume de Mulher”) parece sinalizar com alguma chance, senão de recuperação de Nicola, ao menos de esclarecimento para o mistério que o cerca. Nem um, nem outro: Após um surto inesperado de Nicola ao ver Sdenka –como se dela tivesse pavor incontrolável –ele é encarcerado num quarto com uma camisa de força, enquanto que ela simplesmente desaparece.
O filme irá revelar aos poucos o que de fato aconteceu quando a narrativa valer-se de subterfúgios introspectivos para entrar na própria mente (e nas lembranças) de Nicola –ainda que, com isso, ele acabe lembrando de cenas nas quais não estava presente; lapsos da escolha narrativa do roteiro e da direção.
Empresário do ramo madeireiro em peregrinação pelo interior da Itália onde tinha negócios a tratar, Nicola adentra por uma pequena estrada quando seu carro se descontrola. Uma mulher apareceu (e desapareceu) em sua frente, levando-o a bater o automóvel. Com o carro precisando de reparos e a noite caindo, ele caminha pela floresta em busca de ajuda.
Acaba encontrando a estranha Família Ciuvelak, que vinham então do enterro de um de seus membros, morto aparentemente num episódio violento.
Apesar do comportamento hostil e arredio, eles recebem Nicola em sua morada no centro escuro e desolado da floresta, e o instruem a ficar por ali enquanto for noite até o dia raiar.
Trancam todas as portas e janelas. Ignoram todo e qualquer indício do que possa estar acontecendo do lado de fora. E, ao perplexo e desinformado Nicola, negam qualquer tipo de explicação.
Dentre os membros dessa família –o patriarca Gorka (Bill Vanders); o filho mais velho Jovan (Roberto Maldera); o mais jovem Vlado (Luis Suarez); Sdenka, que a vem a ser a filha; a viúva do falecido, Helena (Teresa Gimpera); e seus dois filhos pequenos Mira (Sabrina Tamborra) e Irina (Cinzia de Carolis) –somente Sdenka parece nutrir alguma intenção de interagir cordialmente com ele; detalhe que mais tarde evoluirá para a atração física.
Numa narrativa lenta que prioriza o suspense, mas chega a flertar inúmeras vezes com o enfadonha, o diretor toma algum tempo para revelar que uma espécie de bruxa (vivida por Maria Monti) ronda a floresta durante suas noites, sediada nos escombros de uma casa devastada por um incêndio.
Nos dias em que convive com aquela família de matutos e seus comportamentos grosseiros (Jovan, por exemplo, resolve desposar Helena quase a força diante do argumento de que o marido dela, seu tio, está morto!), Nicola convive também com seus dilemas da existência num recôncavo assombrado –sem nunca dar à essas assombrações o devido crédito –sobretudo, o ressentimento de Sdenka em jamais conseguir ir para as cidades. Em uma ocasião, o velho Gorka resolve dar um basta e fulminar a tal bruxa munido da dita estaca de madeira no coração –a cena em si transcorre com ênfases elípticas, plantando dúvidas acerca do que de fato ocorreu.
Ao noite cai, e os demais familiares esperam pelo pior –exceto Nicola, estóico na postura incrédula do personagem  que se acha mais esclarecido do que os outros.
Gorka aparece na casa antes de soar a última badalada das 6 horas –horário-limite para as criaturas da noite emergirem –e seus familiares (incluindo Jovan, que já tinha a estaca nas mãos para fulminá-lo, caso precisasse) lhe dão o benefício da dúvida.
É o início do fim: Antes do sol nascer Gorka leva a pequena Irina para a floresta e, enquanto todos os outros empreendem uma busca pela garota, Nicola volta para o vilarejo mais próximo onde tem uma conversa elucidativa com um ex-policial da região: Segundo ele, a floresta e as redondezas onde os Ciuvelak moram são assombrados por um wurdulak –uma variação melancólica e animalesca do vampiro –criatura noturna que se alimenta do sangue dos entes queridos depois de morta e que singra pela noite como um zumbi.
Quando Nicola retorna para reencontrar Sdenka, o pior já aconteceu: A garotinha Irina, convertida em wurdulak, conseguiu atrair sua mãe, Helena, para fora da casa e a mordeu, disseminando o mal. Todos estão transformados em wurdulak.
E a fuga de Nicola desse pesadelo parece de fato evocar o cinema mais contemporâneo de George Romero.
Assim, o filme ratifica e qualifica o tormento experimentado por Nicola até o instante em que, por fim, foi parar naquele hospital, quando se vê novamente diante de Sdenka –então o filme de Giorgi Ferroni lança mão de uma ironia cruel reservada para seu desfecho que o faz, pelo menos nesse término, mais marcante que a obra de Mario Bava e que o conto literário de Tolstoy.

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