domingo, 28 de junho de 2020

Serra Pelada

O cinema brasileiro sempre foi displicente com a própria história. Tomemos como breve exemplo o cinema norte-americano: Se os EUA, volta e meia, realizam produções as mais variadas sobre diversos episódios de sua história antiga e recente –a ponto de tornar expectadores do mundo inteiro cientes de eventos como a Guerra de Secessão, o assassinato de John Kennedy ou, mais recentemente, os atentados de 11 de setembro –o cinema brasileiro por outro lado tem duas únicas produções conhecidas a respeito do maior garimpo a céu aberto da era moderna, transcorrido em pleno território nacional e responsável por reunir uma legião tão grande de trabalhadores braçais quanto a construção das pirâmides. E essas duas produções são “OsTrapalhões Na Serra Pelada” e este “Serra Pelada”, de Heitor Dhalia.
Suas diferenças profundas e essenciais distanciam essas duas obras.
O primeiro, realizado no início da década de 1980, quando o garimpo estava em curso, capturou instantes legítimos da aglomeração humana, quase como um documentário informal –embora sua proposta fosse completamente outra –já a obra de Dhalia observa o acontecimento com olhos atuais de alguém que se volta para o passado, não apenas almejando a primorosa reconstituição que é admiravelmente obtida, mas justapondo uma reflexão moral e existencial com um distanciamento que só o tempo pode permitir.
Na abertura –uma mescla prodigiosa de cenas documentais de arquivo e recriação minuciosa dos percalços dos garimpeiros –vemos os noticiários televisivos que instigaram, em 1980, todo o Brasil: Pepitas gigantescas de ouro, encontradas com facilidade na Serra Pelada, no sudeste do estado do Pará, transformaram em milionários, do dia para a noite, os homens que as acharam.
Amigos de infância, ainda que de índoles bem distintas, o professor de escola pública Joaquim (Júlio Andrade) e o bruta-montes Juliano (o ótimo Juliano Cazarré) deixam São Paulo para se aventurar no garimpo como tantos outros. Eles testemunham, nos meses e anos que se seguem, a multiplicação insana de garimpeiros desesperados pelo ouro enquanto adquirem um barranco por escritura para poder explorar.
Logo, o traquejo para com a violência de Juliano aliado ao conhecimento numérico e organizacional de Joaquim começam a render dividendos levando a dupla a prosperar.
Ainda assim, não basta: Joaquim quer mais dinheiro para a mulher e a filha que deixou para trás; Juliano quer, cada vez mais, integrar a fauna dos poderosos da máfia regional –o que se reflete no conturbado caso que ele tem com a jovem Tereza (a belíssima Sophie Charlotte), noiva de um barão local, o Anão (Matheus Nachtergaele) que a tirou da prostituição.
Como numa boa produção épica, o filme de Dhalia equilibra com competência e zelo as facetas históricas –é mostrado o controle instaurado pelo Exército Brasileiro sobre o garimpo nos anos subsequentes, com a abolição de armas, bebidas alcoolicas e prostitutas da área dos garimpeiros –e as facetas íntimas –as trajetórias pessoais de Juliano e Joaquim, em cujas divergências enxergamos a gradual deterioração de sua amizade.
Uma manobra que em muito faz lembrar a análise de brutalidade e ambição num comprometimento dos valores morais presente em “OTesouro de Sierra Madre”.
Tal qual em “O Cheiro do Ralo”, parece suscitar profundo fascínio no diretor Heitor Dhalia essa observação do caminho que leva um protagonista relativamente puro de encontro à sordidez –daí ser nítido seu interesse maior por Juliano.
A partir do último terço, um personagem que cresce em estatura é o de Wagner Moura, o ganancioso e calculista Lindo Rico, pivô inclusive do rompimento entre os dois amigos.
“Serra Pelada” encontra nessa hábil manipulação de motes –filmes de gangsteres com conluios e tudo o mais, tiroteios quase ao estilo faroeste, e uma nunca subestimada avaliação reflexiva disso tudo –elementos de gênero que o tornam atrativo e envolvente, uma obra digna do perspicaz e hábil diretor que a realizou, preocupada, do início ao fim, com a excelência e a simetria narrativa do caminho de sofrimento, violência e aprendizado trilhado por seus personagens.

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