quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Bonita & Perigosa

 


Kathleen Turner era nos anos 1980 e por um bom tempo na década de 1990, uma atriz festejadíssima; indicada ao Oscar de Melhor Atriz (por “Peggy Sue-Seu Passado A Espera”), símbolo sexual nas telas (como comprova seu papel em “Corpos Ardentes”), e presente em projetos aclamados (“A Honra do Poderoso Prizzi”) e sucessos de bilheteria (“Tudo Por Uma Esmeralda”), ela era uma estrela que brilhava por si própria.

Foi em torno dessa certeza que criou-se o filme “Bonita & Perigosa” nada mais que uma versão feminina mal-disfarçada de inúmeros clichês a pontuar o universo muito masculino dos filmes noir e seus detetives às voltas com casos rocambolescos e violentos.

A circunstância em si lembra também (ao menos para mim), os filmes da blaxploitation estrelados por Pam Grier, como “Coffy” e “Foxy Brown”, nos quais também uma mulher precisa pegar em armas para fazer valer sua própria justiça.

A sorte maior do filme dirigido por Jeff Kanew (de “A Vingança dos Nerds”) é que sua protagonista realmente dá conta do recado: No papel cheio de redundâncias de V.I. Warshawski, Turner demonstra carisma, magnetismo, iniciativa nas cenas de ação e forte presença cênica.

Com ela em cena é até possível esquecer um pouco o lamaçal de obviedades com os quais a trama se principia e prossegue: Vivendo aos trancos e barrancos, a investigadora Warshawski (cujo sobrenome, de difícil pronúncia, serve de piadinha aos coadjuvantes o filme inteiro) assume casos banais sempre quando se prestam à contratá-la; já que, sendo mulher, os predominantemente machistas personagens masculinos não a consideram capaz.

Num momento de happy-hour, a amargar a vida dura num bar, ela conhece Boom Boom Grafalk (Stephen Meadows), famoso ex-jogador de hóquei com quem começa um flerte.

Mais tarde, porém, o rapaz já está em sua casa, empurrando para ela a responsabilidade de zelar pela desbocada filha adolescente dele (!), enquanto interage animadamente com seu ex-marido Murray (Jay O. Sanders). Logo, Boom Boom aparece morto, e Warshawski tem assim um caso para investigar: A morte dele esbarra nas disputas mesquinhas e egoístas de sua família, cujos integrantes –a exemplo dos personagens de “Rei Lear”, de Shakespeare –tiveram toda a fortuna do patriarca (e sua cobiçada área de lotes à margem do Rio Hudson) dividida entre si; mas são incapazes de regê-la em harmonia, levando seus interesses a colidir em conflitos familiares sem muitos escrúpulos. O irmão do falecido Boom Boom, por exemplo, é casado com sua ex-esposa, e tanto ele quanto seu outro irmão alimentavam motivos para eliminá-lo, tendo ele voto definitivo a ser dado aos espólio da família nas negociações.

Com isso, Warshawski tem que bancar a detetive (e ainda esbanjar desenvoltura em cenas de tiroteio, lutas e perseguições), equilibrar-se nas traiçoeiras intrigas familiares de um interesse amoroso que mal conseguiu consumar e ainda incumbir-se das responsabilidades de uma garota recém-tornada órfã –a protagonista é, portanto, uma repaginação de características feministas dos heróis de fime noir do passado, em sintonia com os novos tempos de emancipação da mulher, mas não lhe faltam, ao longo da premissa assim construída, elementos que tornam e insistem a acomodá-la ao seu papel doméstico de mulher: A criança, disfarçada de pivô detetivesco à narrativa, que a confronta com o papel de mãe; o parceiro masculino, cafajeste e relapso que recebe inacreditável simpatia da parte da direção e do roteiro, enquanto à heroína é negada até a chance de uma alternativa romântica; e a presença paternalista e rude (na forma do veterano Charles Durning, a viver um inspetor de polícia), sempre pronto a puxar-lhe a orelha pelos motivos mais prosaicos e triviais.

“Bonita & Perigosa” é um trabalho bastante datado, embora ainda seja capaz de divertir hoje em dia os expectadores que não se incomodarem com sua postura um tanto cabotina e unilateral: Seus realizadores fingem-se liberais, mas na essência mostram-se antiquados –a melhor alternativa é, no fim das contas, focar na única razão que a produção tem para existir: Kathleen Turner.

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