Um dos dois únicos filmes que Andrzej Zulawski entregou na década de 1990 (o outro foi o também desconcertante “A Nota Azul”), “Szamanka” é uma transfiguração muito pessoal desse diretor –como sempre foi inerente a sua personalidade –do roteiro escrito por Manuela Gretkowska com conotações feministas que possivelmente se perderam no turbilhão criativo que envolveu essa realização.
Há uma obsessão em “Szamanka” da parte de seu protagonista masculino pelo xamanismo em geral (postura politeísta que ele vê como uma resposta mais satisfatória à visão cientificamente embasada do mundo físico), e por um xamã em particular (no caso, uma espécie de fóssil que ele descobre em escavações cujas informações passa a tentar obstinadamente levantar).
Essa visão –refletida numa certa crítica
compulsória à modernidade praticada por Zulawski –cresce a ponto de contaminar
todo o filme tornando-se sua razão de ser; e se há algo no qual Zulawski
especializou-se é em retratar a ideologia que enlouquece o homem.
Michal (Boguslaw Linda) é pois uma contradição
ambulante: Envolvido com arqueologia (é como encontra o fóssil) e no decurso de
seu doutorado em antropologia psiquiátrica, Michal se descobre convicto das
abstrações do mundo e da natureza, muito melhor entendidas nos preceitos do
xamanismo do que nas embotadas explicações modernas.
Ele tem uma noiva, no entanto, também aí ele
entra em contradição: Não hesita em lançar-se num relacionamento ardente com
uma jovem universitária (Iwona Petry, hipnótica nas cenas de nudez e sexo),
essa sim a real protagonista do filme.
Jovem à margem do sistema, ela –que sequer
recebe um nome na narrativa ganhando no máximo a alcunha de “italiana” –estuda
engenharia, e mantém-se obtendo auxílio em troca de favores sexuais; ela é o
louco que se atreve a fugir dos padrões e a não viver conforme as convenções de
um sistema.
Paga, entretanto, um preço caro por isso:
Precisa alimentar-se à maneira dos moradores de rua (como vemos na cena que
abre o filme), mora num apartamento descartado pelo irmão de Michal (aliás, foi
assim que se conheceram) e perambula, alucinada, por uma Polônia flagrada em
todas as suas mazelas sociais e políticas. A fim de obter alguma ocupação, ela
encara dois empregos dos mais ingratos; num, ela opera (com o mínimo de
capacitação) uma máquina numa fundição de aço, noutro, ela obedece as ordens de
seu pai (ou padrasto, quem sabe?) numa nauseante e grotesca fábrica de moagem
de carne.
Nas horas vagas, ela e Michal exaurem um ao
outro numa relação onde o sexo, mais do que qualquer coisa, define sua
proximidade.
Fica claro ser, portanto, este o encontro entre
duas almas que, de formas diferentes são dois xamãs (Michal em sua concordância
com as pluralidades da existência; a “Italiana” pelo simpes fato de desempenhar
um assumido papel renegado), desolados em seu extravio num mundo moderno e sem
sentido –os simbolismos infindáveis propostos pela narrativa de Zulawski (com o
desfecho ocasionado pela explosão simbólica de uma ‘bomba nuclear’, a falha
suprema e final da humanidade) emolduram assim essa história de amor
inconsequente subliminando as intenções de seu próprio realizador, e
enfatizando a esquizofrenia latente que intoxica todos os seus trabalhos numa
indicação plena da crítica aos desejos mesquinhos e sórdidos que o ser humano
mantém domados e contidos dentro de si, mas que, nos filmes de Zulawski, são
extravazados na forma de arroubos
histéricos e comportamentos anormais –que condizem, no entanto, com a conduta
contestadora de seus personagens.
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