quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Szamanka

 


Um dos dois únicos filmes que Andrzej Zulawski entregou na década de 1990 (o outro foi o também desconcertante “A Nota Azul”), “Szamanka” é uma transfiguração muito pessoal desse diretor –como sempre foi inerente a sua personalidade –do roteiro escrito por Manuela Gretkowska com conotações feministas que possivelmente se perderam no turbilhão criativo que envolveu essa realização.

Há uma obsessão em “Szamanka” da parte de seu protagonista masculino pelo xamanismo em geral (postura politeísta que ele vê como uma resposta mais satisfatória à visão cientificamente embasada do mundo físico), e por um xamã em particular (no caso, uma espécie de fóssil que ele descobre em escavações cujas informações passa a tentar obstinadamente levantar).

Essa visão –refletida numa certa crítica compulsória à modernidade praticada por Zulawski –cresce a ponto de contaminar todo o filme tornando-se sua razão de ser; e se há algo no qual Zulawski especializou-se é em retratar a ideologia que enlouquece o homem.

Michal (Boguslaw Linda) é pois uma contradição ambulante: Envolvido com arqueologia (é como encontra o fóssil) e no decurso de seu doutorado em antropologia psiquiátrica, Michal se descobre convicto das abstrações do mundo e da natureza, muito melhor entendidas nos preceitos do xamanismo do que nas embotadas explicações modernas.

Ele tem uma noiva, no entanto, também aí ele entra em contradição: Não hesita em lançar-se num relacionamento ardente com uma jovem universitária (Iwona Petry, hipnótica nas cenas de nudez e sexo), essa sim a real protagonista do filme.

Jovem à margem do sistema, ela –que sequer recebe um nome na narrativa ganhando no máximo a alcunha de “italiana” –estuda engenharia, e mantém-se obtendo auxílio em troca de favores sexuais; ela é o louco que se atreve a fugir dos padrões e a não viver conforme as convenções de um sistema.

Paga, entretanto, um preço caro por isso: Precisa alimentar-se à maneira dos moradores de rua (como vemos na cena que abre o filme), mora num apartamento descartado pelo irmão de Michal (aliás, foi assim que se conheceram) e perambula, alucinada, por uma Polônia flagrada em todas as suas mazelas sociais e políticas. A fim de obter alguma ocupação, ela encara dois empregos dos mais ingratos; num, ela opera (com o mínimo de capacitação) uma máquina numa fundição de aço, noutro, ela obedece as ordens de seu pai (ou padrasto, quem sabe?) numa nauseante e grotesca fábrica de moagem de carne.

Nas horas vagas, ela e Michal exaurem um ao outro numa relação onde o sexo, mais do que qualquer coisa, define sua proximidade.

Fica claro ser, portanto, este o encontro entre duas almas que, de formas diferentes são dois xamãs (Michal em sua concordância com as pluralidades da existência; a “Italiana” pelo simpes fato de desempenhar um assumido papel renegado), desolados em seu extravio num mundo moderno e sem sentido –os simbolismos infindáveis propostos pela narrativa de Zulawski (com o desfecho ocasionado pela explosão simbólica de uma ‘bomba nuclear’, a falha suprema e final da humanidade) emolduram assim essa história de amor inconsequente subliminando as intenções de seu próprio realizador, e enfatizando a esquizofrenia latente que intoxica todos os seus trabalhos numa indicação plena da crítica aos desejos mesquinhos e sórdidos que o ser humano mantém domados e contidos dentro de si, mas que, nos filmes de Zulawski, são extravazados na forma de  arroubos histéricos e comportamentos anormais –que condizem, no entanto, com a conduta contestadora de seus personagens.

Pontuado por observações intelectuais um tanto inacessíveis em suas entrelinhas, e carregado de uma transgressão tão extasiante que chega a desestabilizar o expectador, “Szamanka” é uma prova cabal da tenacidade de Zulawski em abraçar e defender suas inquietações mais pessoais –mesmo diante da polêmica que ele, mais uma vez, tornou a suscitar na Polônia –e um testemunho da entrega irrestrita que ele consegue extrair de seu elenco (Iwona Petry é especialmente fenomenal) e das imagens inesquecíveis que ele imprime na tela do cinema.

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