terça-feira, 6 de outubro de 2020

Acima das Nuvens

Este filme de Olivier Assayas chamou a atenção de público e crítica ao conquistar, em 2014, o prêmio César de Melhor Atriz Coadjuvante para Kristen Stewart, pela primeira vez concedido a uma atriz norte-americana; por isso mesmo, foi um dos grandes responsáveis por ajudar sua carreira a se desvencilhar da sombra pejorativa da “Saga Crepúsculo”, fazendo o público voltar a enxergá-la como uma boa e promissora atriz.
No entanto, não é Kristen (embora o pareça em inúmeros momentos) o cerne de “Acimas das Nuvens”: É a protagonista complexa, vulnerável e cheia de camadas interpretada pela linda e formidável Juliette Binoche, encantadora do alto de seus 50 anos.
Maria Enders é uma já veterana estrela de cinema; Valentine (Kristen) é sua leal assistente, dedicada desde o início do filme à atravessar o pântano lamacento do excesso de compromissos a serem agendados, a perseguição nem sempre lisonjeira da mídia e as batalhas de ego ocasionais da vida de uma celebridade. Valentine é também, pelo tempo decorrido de já trabalharem juntas, uma grande amiga, a despeito da diferença de idade.
É Valentine quem mais ajuda Maria a superar a notícia do falecimento do escritor Wilhelm Melchoir, um amigo íntimo e quase um caso amoroso de seu início de carreira. Ele é também autor de uma célebre peça teatral, “Maloja Snake”, cuja adaptação cinematográfica foi a grande responsável para consolidar o estrelato de Maria.
Agora, todavia, em função do falecimento, ganha as manchetes de jornais a notícia de que uma nova montagem da mesma peça chegará aos palcos –e a trama de “Maloja Snake” é a seguinte: Num competitivo âmbito profissional, duas mulheres, Sigrid e Helena (a primeira, jovem, calculista e ávida; e segunda, calejada, presunçosa e maternal) se defrontam numa guerra de personalidades (não desprovida de alguma atração velada) que resulta na ascensão de Sigrid (outrora a personagem que Maria interpretou) e na derrocada de Helena.
O diretor dessa nova peça (Lars Eidinger) almeja, passados vintes anos, que agora Maria interprete Helena, numa espécie de fechamento de um ciclo. O papel de Sigrid foi ocupado por uma jovem e conturbada atriz norte-americana (Chloe Grace Moretz), presença constante em tabloides de escândalos.
Inicialmente relutante, Maria aceita participar da peça –porque deseja, de alguma forma, honrar o autor falecido, porque Valentine enxerga na peça todo um sentido cíclico que ela não deseja ver, e porque sabe que, lá no fundo, o subtexto da peça traz alguns demônios que ela precisa encarar (sem muita certeza se irá superá-los).
Hospedada na bela casa de campo onde Melchior escreveu “Maloja Snake” –na qual, em meio às paisagens montanhosas, se pode perceber o fenômeno climático denominado “Serpente de Maloja” que dá nome à peça –Maria se dedica à encenar e reencenar o texto com Valentine, desta vez não mais no papel de Sigrid (que Maria compreende à perfeição), mas no de Helena (no qual ela identifica as fragilidades da escrita e se ressente pelos rumos ingratos reservados à personagem e, em última instância, a si própria).
Em algum momento desses ensaios aparentemente banais, as personalidades de Maria e Valentine se confundem com as de Helena e Sigrid –o embate geracional de opiniões e sentimentos; a relação de mágoas e posturas profissionais, a proximidade que leva a interesses que escapam à esfera profissional.
No brilhante cinema de contornos intimistas que realiza –amparado no talento de duas atrizes espetaculares –Assayas faz reverência e referência, sobretudo, às inquietações muito habituais ao cinema de Ingmar Bergman, em especial, seu incisivo “Persona”, também ele um mergulho sem ressalvas nas disfunções de psicologia na mente de duas mulheres.

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