domingo, 26 de março de 2023

A Frente Fria Que A Chuva Traz


 Não obstante ser um diretor capaz de conceber um longa-metragem mesmo nos tempos difíceis do cinema brasileiro –onde não é fácil para ninguém sagrar-se cineasta –o diretor Neville D’Almeida segue fazendo filmes que desafiam o paladar de qualquer expectador, ostentando uma espécie de desleixo planejado, um mau gosto deliberado que pode, ou não, fazer parte de suas intenções presunçosas de chacoalhar sensibilidades. Nessa esteira, pode-se argumentar que “A Frente Fria Que A Chuva Traz” –que nem é um filme tão velho assim, data de 2015 –tenta evocar a mesma recepção e choque provocados por seu “Rio Babilônia”, que assombrou público e crítica num longínquo 1982. E olha que, na época, o auge das pornochanchadas, cenas de nudez e sexo costumavam ser recebidas com relativa indiferença pela audiência. “Rio Babilônia” ia mais além, perpetrando um retrato cru, transgressivo e provocante, de uma juventude burguesa, alienada e hedonista por meio de cenas que, de tão despojadas, soavam ofensivas: Por sinal, é até hoje lendária, e alvo de debate, a famigerada cena em que a atriz Denise Dumont (famosa pelas novelas da Globo) transa com dois homens numa piscina. Expectadores ainda discutem se o que aparece no filme é sexo simulado ou verdadeiro!

Em “A Frente Fria Que A Chuva Traz”, Neville D’Almeida, 33 anos depois, parece perseguir objetivo muito parecido, porém, com vários resultados diferentes: Se em 1982, “Rio Babilônia” conseguiu se sobressair mesmo em meio às vastas produções de conteúdo adulto que afloravam no circuito, em 2015, “A Frente Fria Que A Chuva Traz”, mesmo que solitário ao ostentar cenas supostamente ousadas no cinema, não atraiu maiores interesses nem de público, nem de crítica, nem de ninguém. Em grande parte, porque o teor controverso foi atenuado para os tempos atuais: Atores conhecidos desta geração como Bruna Linzmeyer, Chay Suede e Johnny Massaro já não são expostos a ousadias envolvendo nudez e sexo como antes –no mais, são os diálogos que ostentam um alarmante nível de baixaria e linguajar chulo. Afinal, os expectadores de hoje, e seu execrável hábito de cancelar qualquer coisa e qualquer um, oferecem certo perigo à quem quiser exercer sua liberdade criativa a todo custo. Sejamos justos: Outra boa razão para a pouca repercussão, fica clara em poucos minutos de filme; O trabalho de D’Almeira é pedante, ginasiano e mal-acabado, exibindo um descaso em termos técnicos e narrativos que parece improvável vindo de um diretor com tanta experiência acumulada, o que gera a possibilidade de que toda essa bobagem foi proposital. No entanto, uma atenção um pouco maior à filmografia de D’Almeida mostra que, de fato, ele nunca se preocupou muito com qualidade.

Ao amanhecer, um grupo de jovens burgueses dá continuidade aos seus planos de realizar uma festa regada a sexo, drogas e música eletrônica numa laje alugada em pleno Morro do Vidigal. Adaptado da peça teatral de Mario Bortolotto, o filme acompanhará seus personagens desde o início do dia até a chegada da noite, onde as prevaricações e estripulias se sucederão.

E tais personagens são uma vitrine da degradação moral a rondar a juventude da classe média-alta que D’Almeida parece tão ávido em escancarar: Os organizadores da festa e playboyzinhos degenerados Espeto e Alisson (Chay Suede e Johnny Massaro, o protagonista do maravilhoso “O Filme da Minha Vida”), a prostituta e viciada em heroína Armsterdã (Bruna Linzmeyer), o cantor de sertanejo universitário Raposão (Michel Melamed), uma espécie de parasita de toda devassidão e alienação dessa categoria, além das patricinhas promíscuas interpretadas por Juliane Araújo, Natalia Lima Verde, Marina Provenzzano e Juliana Lohhman, todas elas, jovens rostos conhecidos do público das novelas televisivas. O frio iminente, murmurado aqui e ali com displicência pelos personagens, é na dramaturgia de Neville D’Almeira uma metáfora para a circunstância de opressão moral que, mais cedo ou mais tarde, cobrará o devido preço pelos excessos de seus personagens.

Ficando no meio do caminho entre uma realização plena de suas intenções e uma obra incapaz de alcançar um nível mais satisfatório de transgressão, o trabalho de Neville D’Almeida ainda assim se destaca, como era de se esperar, por sua ousadia, embora a miscelânea de técnicas, influências e improvisos que levaram ao resultado final transforme “A Frente Fria Que A Chuva Traz” num estranho exemplar onde se nota sua intenção de chocar, mesmo que ele encontre muito pouco êxito nesse objetivo.

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