quarta-feira, 19 de julho de 2023

A Pequena Sereia


 Muito anos antes do live-action polêmico (à sua maneira, claro) da Disney, aliás, muito antes da clássica e aclamada animação da Disney de 1989, houveram, sim, outras adaptações do conto de fadas de Hans Christian Andersen. E uma das mais curiosas, vem a ser esta produção tcheca, oriunda do ebuliente cinema da Tchecoslováquia realizado na década de 1970, com evidentes tintas daquele Movimento Surrealista de então. Para tanto, este “A Pequena Sereia” não é tão recomendado para as crianças assim: Não apenas a atmosfera do filme como um todo remete a um fatalismo estranho e desigual, como a manutenção do final original do conto –desconstruído pela Disney em sua animação necessariamente otimista –pode incomodar, e muito, a sensibilidade dos mais pequenos. Embora, na sua pouca predisposição para uma fantasia colorida e alienadamente alegre, o filme de Karel Kachyna encontre, com frequência, sua originalidade.

Vivida por Miroslava Safránková, a protagonista é, como no conto, a filha predileta do Rei dos Mares devido à sua voz encantadora e sua beleza herdada da mãe transformada, por um feitiço, numa estátua de pedra. No entanto, outra coisa ela também herdou da mãe: Uma curiosidade palpitante pelo desconhecido povo da superfície. Em cerimônias que costumam se suceder quando outros reis, de outros reinos dos sete mares, lhes visitam, o Rei vale-se de seus poderes para provocar eventuais naufrágios fazendo com que restos mortais de navios naufragados sejam trazidos para o fundo do mar, e assim, todos possam observar, intrigados, os apetrechos da superfície. Numa dessas ocasiões –bem quando vem a conhecer seu insôsso pretendente –a Pequena Sereia aproveita para contemplar objetos que, a medida que vai crescendo e virando uma adolescente, a fascinam cada vez mais. Ao escapar para a superfície, ela conhece um príncipe e, numa oportunidade, salva sua vida, para então desaparecer. Apaixonada por ele e invariavelmente arrebatada pelo mundo humano que tanto anseia conhecer, ela acaba fazendo um pacto com uma feiticeira do mal: Sua bela voz em troca da possibilidade de caminhar entre os humanos na terra.

Contudo, os planos da sereia não se realizam como ela almejava: Embora encantado por sua beleza, e simpático à ela, o príncipe só sabe pensar na misteriosa princesa estrangeira que, em delírio, ele viu ao ser salvo. E ele sabe que tal princesa tem uma voz prodigiosa –impossível, portanto, de ser aquela jovem muda que hospedou-se em seu castelo logo depois.

Com circunstâncias tão ironicamente cruéis a lhe desfavorecer, a pequena sereia vê, impotente, os dias se passarem até a chegada da data-limite imposta pela feiticeira, quando ela, tendo perdido a chance de conquistar seu amado para sempre, viraria espuma do mar.

Certamente, mais linear e comercial do que outras obras pulsantes em criatividade e transgressão que emergiram no mesmo período da Tchecoslováquia, “A Pequena Sereia” mesmo assim, representa um choque de vanguarda visual e arrojo artístico às plateias de hoje, acostumadas à mesmice hollywoodiana –até mesmo a caracterização convencional atribuída aos seres submarinos em obras de ficção (com tridentes e tudo o mais) é, em dado momento, ironizada pelos personagens. A concepção do mundo no fundo do mar destoa do que muitos outros filmes já fizeram: Tudo é filmado num parque de rochas, banhado em difusa luz azul, e com a rotação de câmera alterada simulando a fluidez etérea da água. Essas e várias outras opções de ordem artística e artesanal transformam este “A Pequena Sereia” numa obra completamente distinta da produção Disney com a qual certamente pode ser comparada –na realidade, em sua minúcia de detalhes peculiares e na indiferença para com rumos mais previsíveis em sua narrativa, ele acaba lembrando mais a pouco usual animação “Ponyo-Uma Amizade Que Veio do Mar”, de Hayao Myiazaki.

Nenhum comentário:

Postar um comentário