quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Cavaleiro da Lua


 Dentre a profusão de séries e minisséries que a Marvel Studios despejou no streaming do Disney Plus a partir de sua Fase 4, “Cavaleiro da Lua” é uma das poucas que não viu sua qualidade se dissipar na medida em que toda uma trama que poderia ser comportada num filme se estendeu (e se enrolou) por todo um seriado –a produção (concebida na maioria de seus seis episódios por Mohamed Biab, diretor, e Jeremy Slater, produtor) é enxuta, dinâmica, intrigante, felizmente despida de conexões muito comprometedoras com demais obras da Marvel (aspecto narrativo que, com o tempo, prejudicou a fluidez de muitos trabalhos) e soube manejar roteiro, direção e elenco de modos a enfatizar o protagonista como o grande personagem que ele é.

Superherói do segundo (talvez, terceiro!) escalão da Marvel nos quadrinhos, o Cavaleiro da Lua sempre foi visto pela maioria dos fãs como uma espécie de variação do Batman na Marvel –seu apelo visual, com capa, máscara e apetrechos de uso físico, realmente leva à essa constatação –no entanto, o enredo bastante funcional da série foca justamente naquilo que o personagem tem de mais original, e que faz dele um exemplar bastante relevante dos elementos muito humanos que a Marvel sempre buscou imprimir em suas criações: Seus transtornos mentais.

Steven Grant (Oscar Isaac) aparenta ser um cidadão londrino absolutamente normal, tem um trabalho medíocre vendendo bugigangas na ala egípcia do Museu de História de Londres, vive sendo achincalhado por sua patroa e mal é notado por seus colegas, entretanto, há algo de suspeito na rotina de Steven: Ele prende uma corrente na própria perna todas as noites antes de dormir, coloca uma fita aderente em sua porta e, assim mesmo, possui frequentes lapsos de tempo (esquece do que fez ao longo de dois dias, por exemplo). Quem acompanha os quadrinhos sabe da explicação (ainda que no primeiro episódio se faça algum suspense para fornecê-la): Steven tem uma outra personalidade chamada Marc Spector que trabalha, na realidade, como mercenário, em missões audaciosas mundo afora. Mais que isso; numa de suas missões, Marc, alvejado por tiros e à beira da morte, foi interpelado pelo deus egípcio Khonshu (voz do grande F. Murray Abrahams) que fez dele seu avatar na Terra –o que dá à Marc poderes que vêem com o traje místico do Cavaleiro da Lua, como força, resistência e habilidades de luta aprimoradas (o pacote básico do superherói)!

Embora do protagonista de fato seja Marc Spector, e não Steven Grant, é Steven quem detém o protagonismo nos primeiros episódios da série –Marc vai surgindo aos poucos, inclusive o mistério em torno da origem de seus poderes, assim como os elementos conhecidos dos quadrinhos que o circundam. À reboque de seu protagonismo veem outros personagens, como Layla (a bela May Calamawy), que revela-se a esposa de Marc (!) e forma com ele um casal dos mais complicados; e o vilão Arthur Harrow (Ethan Hawke, cada vez melhor), um fanático líder religioso cujos planos são despertar a Deusa Ammit, uma ferrenha oponente de Khonshu, cuja fúria homicida pode varrer a maior parte da vida no planeta.

O terceiro episódio traz o personagem Mogart (interpretado pelo francês Gaspard Ulliel, falecido pouco antes da estréia da série no Disney Plus, no início de 2022), um rico colecionador de antiguidades no Egito que oferece à Marc e Layla uma alternativa para encontrar o rastro de Ammit antes de Harrow.

Fazendo um marcante elo do personagem principal com a cultura e a mitologia egípcia –elemento trazido com entusiasmo por Mohamed Diab e sua esposa Sarah Goher, consultora de produção do projeto –“Cavaleiro da Lua” se revela um dos mais independentes e auto-contidos produtos a surgir na Marvel Studios em muito tempo (num primeiro momento, pode-se afirmar que praticamente não existem referências à outras obras da Marvel, como é comum em suas outras realizações), o que termina sendo um trunfo: Munido de um enredo eficaz e envolvente e de uma direção relativamente bem administrada, na gerência de cenas de ação e de efeitos visuais, “Cavaleiro da Lua” joga boa luz sobre um personagem desconhecido do grande público, dando-lhe chances de elevar-se ao status dos grandes figurões do estúdio.

Se depender do belíssimo trabalho do ator guatemalteco Oscar Isaac (um ótimo ator subaproveitado pela indústria cuja carreira ascendeu após marcar presença no magnífico “Inside Llewyn Davis-Balada de Um Homem Comum”) na composição despida de caricatura ou de afetação das inúmeras personas fragmentadas de sua psiquê, esse personagem ainda irá longe.

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