sábado, 25 de março de 2017

Lolita

Há algum tempo atrás, nos primórdios da criação deste espaço, eu fiz uma resenha do “Lolita” de Adrian Lyne lançado no fim dos anos 1990, adaptado da obra de Vladimir Nabokov. Agora, seguindo o caminho inverso, eu volto ao passado, para falar da primeira adaptação, feita pelo mestre Stanley Kubrick, em 1962.
A trama é basicamente a mesma em ambos. O tratamento dado por seus realizadores, não.
Adrian Lyne fez um filme mais fiel ao livro, preservando inclusive toda a roupagem escandalosa inerente à premissa de uma jovem menor de idade envolvida com um homem pelo menos vinte anos mais velho –cuja repercussão negativa chegou a afetar o desempenho de público e crítica de seu filme.
Mas, como pode o filme de Lyne ser mais fiel ao livro, se Kubrick dispunha do próprio Vladimir Nabokov como roteirista?
A resposta é que o filme de Kubrick se mantém firme e fiel não à trama ou seus infinitos detalhes, mas ao senso de observação moral que, em seu cerne, Nabokov almejava.
Resumindo: Kubrick entendeu o livro; Lyne enamorou-se por ele.
Kubrick fez de seu filme um tratado ético e antropológico sobre as tendências obscuras do homem; Lyne fez quase uma história de amor.
É sob esse prisma que o trabalho de Kubrick se sobressai em relação ao de Lyne –que, não há dúvidas, fez um filme belo, visualmente embriagante e de conotações comoventes.
Não era e nem nunca foi essa a intenção de Nabokov.
Na primeira metade do Século XX, o inglês Humbert Humbert (James Mason, num registro bastante diferente do elegante Jeremy Irons, no outro filme), professor universitário de meia-idade vai trabalhar nos EUA, e apaixona-se perdidamente por Dolores, ou Lolita (a bela e magnética Sue Lyon), a filha de Charlotte (Shelley Winters), a viúva que administra a pensão onde passa a morar.
Ele casa-se com Charlotte a fim de manter-se próximo à garota, mas, ela descobre esse segredo morrendo atropelada logo em seguida, o quê faz de Humbert Humbert o guardião legal de Lolita.
Ele inicia com ela uma enorme viagem pelas rodovias norte-americanas na intenção de consumar seu romance proibido, mas um estranho misterioso passa a seguí-los: Clare Quilty (aqui interpretado por um ardiloso Peter Sellers que depois faria com Kubrick o filme “Dr. Fantástico”).
Há um deliberado desleixo no tratamento dado por Kubrick ao seu protagonista: A atuação de James Mason é displicente, sôfrega e às vezes até desagradável. Isso corresponde ao juízo do próprio diretor em relação ao personagem: Para Kubrick toda e qualquer ação de Humbert Humbert é reprovável, e ele o faz ser o mais apático personagem em cena.
Já, Lolita é de um primor absoluto: Há todo um cuidado especial de Kubrick na atuação de Sue Lyon, na maneira com que ela é mostrada (absurdamente linda!) e em nenhum momento ela soa histriônica, como acontece de maneira provavelmente involuntária no filme de Lyne.
Por conseqüência, no filme de Kubrick, é por Lolita que o expectador se compadece, torcendo para a ruína de seu molestador, por mais que este seja o narrador da história, e permaneça por mais tempo em cena.
Eis a diferença fundamental: Lyne fez um filme onde Humbert Humbert era interpretado por um ator agradável e talentoso, e Lolita (ainda que bela) era vivida por uma jovem Dominique Swain, quase sem bases dramáticas, o quê fez com que Lolita soasse para o público menos carismática e interessante do que seu algoz.
Kubrick jamais descuida disso: Assim como Nabokov em seu livro, ele exerce domínio inigualável sob sua narrativa, e deixa claro que Humbert Humbert é guiado por pulsões hediondas de um ser inescrupuloso e molestador.

Lolita é, afinal, a heroína de sua própria história.

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