Há algum tempo atrás, nos primórdios da criação
deste espaço, eu fiz uma resenha do “Lolita” de Adrian Lyne lançado no fim dos
anos 1990, adaptado da obra de Vladimir Nabokov. Agora, seguindo o caminho
inverso, eu volto ao passado, para falar da primeira adaptação, feita pelo
mestre Stanley Kubrick, em 1962.
A trama é basicamente a mesma em ambos. O
tratamento dado por seus realizadores, não.
Adrian Lyne fez um filme mais fiel ao livro,
preservando inclusive toda a roupagem escandalosa inerente à premissa de uma
jovem menor de idade envolvida com um homem pelo menos vinte anos mais velho
–cuja repercussão negativa chegou a afetar o desempenho de público e crítica de
seu filme.
Mas, como pode o filme de Lyne ser mais fiel ao
livro, se Kubrick dispunha do próprio Vladimir Nabokov como roteirista?
A resposta é que o filme de Kubrick se mantém
firme e fiel não à trama ou seus infinitos detalhes, mas ao senso de observação
moral que, em seu cerne, Nabokov almejava.
Resumindo: Kubrick entendeu o livro; Lyne
enamorou-se por ele.
Kubrick fez de seu filme um tratado ético e
antropológico sobre as tendências obscuras do homem; Lyne fez quase uma
história de amor.
É sob esse prisma que o trabalho de Kubrick se
sobressai em relação ao de Lyne –que, não há dúvidas, fez um filme belo,
visualmente embriagante e de conotações comoventes.
Não era e nem nunca foi essa a intenção de
Nabokov.
Na primeira metade do Século XX, o inglês
Humbert Humbert (James Mason, num registro bastante diferente do elegante
Jeremy Irons, no outro filme), professor universitário de meia-idade vai
trabalhar nos EUA, e apaixona-se perdidamente por Dolores, ou Lolita (a bela e magnética
Sue Lyon), a filha de Charlotte (Shelley Winters), a viúva que administra a
pensão onde passa a morar.
Ele casa-se com Charlotte a fim de manter-se
próximo à garota, mas, ela descobre esse segredo morrendo atropelada logo em
seguida, o quê faz de Humbert Humbert o guardião legal de Lolita.
Ele inicia com ela uma enorme viagem pelas
rodovias norte-americanas na intenção de consumar seu romance proibido, mas um
estranho misterioso passa a seguí-los: Clare Quilty (aqui interpretado por um
ardiloso Peter Sellers que depois faria com Kubrick o filme “Dr. Fantástico”).
Há um deliberado desleixo no tratamento dado
por Kubrick ao seu protagonista: A atuação de James Mason é displicente,
sôfrega e às vezes até desagradável. Isso corresponde ao juízo do próprio
diretor em relação ao personagem: Para Kubrick toda e qualquer ação de Humbert
Humbert é reprovável, e ele o faz ser o mais apático personagem em cena.
Já, Lolita é de um primor absoluto: Há todo um
cuidado especial de Kubrick na atuação de Sue Lyon, na maneira com que ela é
mostrada (absurdamente linda!) e em nenhum momento ela soa histriônica, como
acontece de maneira provavelmente involuntária no filme de Lyne.
Por conseqüência, no filme de Kubrick, é por
Lolita que o expectador se compadece, torcendo para a ruína de seu molestador,
por mais que este seja o narrador da história, e permaneça por mais tempo em
cena.
Eis a diferença fundamental: Lyne fez um filme
onde Humbert Humbert era interpretado por um ator agradável e talentoso, e
Lolita (ainda que bela) era vivida por uma jovem Dominique Swain, quase sem
bases dramáticas, o quê fez com que Lolita soasse para o público menos
carismática e interessante do que seu algoz.
Kubrick jamais descuida disso: Assim como
Nabokov em seu livro, ele exerce domínio inigualável sob sua narrativa, e deixa
claro que Humbert Humbert é guiado por pulsões hediondas de um ser
inescrupuloso e molestador.
Lolita é, afinal, a heroína
de sua própria história.
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