Chamado de ‘filme-concerto’ por seu próprio
criador em pessoa, Walt Disney, o longa-metragem “Fantasia” ambicionava mesclar
música clássica e animação num espetáculo onde essas duas formas de arte se
elevassem.
A um só tempo pretensioso, revolucionário e
complexo, o projeto era estruturado de forma episódica.
No princípio, um narrador (o apresentador Deems
Taylor) cercado de membros reais de uma orquestra, explica ao público as
diversas formas conceituais de música clássica, uma maneira de apresentar
também o primeiro segmento, “Toccata e Fuga”, que trata-se de uma variação
visual e livre em torno da música, representada em seus acordes por uma
sucessão de imagens abstratas de formas e cores em transformação.
Depois, em “Suíte Quebra-Nozes”, a música de
Tchaikovsky serve de acompanhamento para a ação de pequenas fadas que, por meio
de seu encantamento, produzem o orvalho que reveste plantas e flores em um
bosque.
Eventualmente, os seres desse bosque –seus
cogumelos, suas flores e até mesmo peixes de um lago –se transfiguram em
dançarinos que executam performances através das várias modalidades musicais
apresentadas.
Fica claro que as fadas simbolizam a mudança
das estações do ano quando elas trazem o esmaecer do outono e, ao fim, a
gelidez do inverno.
No episódio mais conhecido de toda a antologia,
“O Aprendiz de Feiticeiro”, Mickey Mouse aparece como o ingênuo e travesso
protagonista. Humilde servo de um poderoso feiticeiro, ele se aproveita de um
momento de descanso de seu senhor para usar as propriedades místicas de seu
chapéu mágico.
Como ele, Mickey transforma uma reles vassoura
de pau num autômato: Pode assim realizar sua função de encher o poço com baldes
de água sem se cansar ou se ressentir da tarefa.
Mickey aproveita o ensejo para tirar uma soneca
–durante a qual sonha estar no controle das forças do céu e do mar –contudo, ao
acordar, um imprevisto o aguarda: a vassoura tanto executou seu serviço que a
casa do feiticeiro se alagou!
Logo em seguida, a versão idealizada por Walt
Disney de “A Sagração da Primavera”, onde ele, por sua vez, visualiza o
surgimento da vida na Terra, que começa com as mutações cósmicas, mostrando o
planeta em seu estágio geológico inicial com ventos, fogo e maremotos, para
então se tornar propício às formas de vida (os protozoários, depois os peixes,
e enfim os dinossauros), numa sequência que deixa bastante clara a influência
desta animação para Terence Malick em uma das passagens de seu “A Árvore da Vida”.
Após uma bem-humorada apresentação da linha que
define a trilha sonora –um feixe luminoso que expressa timidez inicialmente
–somos introduzidos no episódio “Pastoral”, de Beethoven.
Considerado algo grosseiro por alguns críticos,
esse trecho mostra vários grupos de criaturas oriundas da mitologia grega
–unicórnios, faunos, pegasus e centauros –todos em geral se divertindo num dia
no campo. Os centauros em particular experimentam seguidos rituais de sedução e
encontro, incentivados por pequenos querubins desnudos –a nudez, neste e em
outros momentos de “Fantasia” não é vista com tanto tabu assim.
Mais tarde, Zeus irrompe ao céu com uma
tempestade –uma mera brincadeira para ele –enquanto joga relâmpagos na terra,
forjados por Vulcano. Mas, Zeus logo se entedia e dorme, deixando que o sol se
ponha e a noite chegue.
No episódio seguinte, “A Dança das Horas”,
extraído de “La Gioconda”, de Ponchielli, os animadores de Disney materializam,
ao seu jeito muito particular, as horas do dia na forma de grupos sucessivos de
dançarinos. No primeiro deles (um desengonçado e ao mesmo tempo delicado bando
de avestruzes), as bailarinas representam o amanhecer; no segundo (vários
hipopótamos!), é simbolizada a luz radiante do meio-dia; no terceiro
(elefantes, todos, diga-se, calçados de sapatilhas de balé!), as nuances suaves
do entardecer são personificadas, para então, no quarto grupo (vários
crocodilos), a escuridão da noite aparecer.
Ao fim, uma celebração contrapõe com graça
todos os grupos de dançarinos, deixando evidentemente sobrepujados os
representantes da noite pelos representantes do dia.
O último segmento faz uma fusão de duas músicas
bastante distintas –quase antagônicas –“Uma Noite No Monte Calvo”, de
Mussorgsky, e em seguida, “Ave Maria”, de Schubert.
Em “Monte Calvo”, segundo a lenda enxergado
como a morada dos seres das trevas, a animação choca os mais habituados à
inocência da Disney com um retrato sombrio e imponente do próprio Diabo (!)
que, na noite do Dia das Bruxas, conclama sua horda de seguidores pecaminosos e
apavorantes –num desfile que remete às criaturas demoníacas ilustradas pelo
artista Hyeronimus Bosch –para um ritual caótico de dança e degeneração.
A festa profana é interrompida com o primeiro
badalar dos sinos –o chamado dos fiéis, durante as primeiras horas do novo dia
à Igreja –o que arremessa os seres das trevas de volta ao seu covil, numa
transição de uma música para a outra.
Erudito, culto e
frequentemente a frente de seu tempo, “Fantasia” é visto como inacessível por
uns, e estupendo por outros. Para mim, ele é sublime em sua originalidade
artística.
Nenhum comentário:
Postar um comentário