sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Fantasia

Chamado de ‘filme-concerto’ por seu próprio criador em pessoa, Walt Disney, o longa-metragem “Fantasia” ambicionava mesclar música clássica e animação num espetáculo onde essas duas formas de arte se elevassem.
A um só tempo pretensioso, revolucionário e complexo, o projeto era estruturado de forma episódica.
No princípio, um narrador (o apresentador Deems Taylor) cercado de membros reais de uma orquestra, explica ao público as diversas formas conceituais de música clássica, uma maneira de apresentar também o primeiro segmento, “Toccata e Fuga”, que trata-se de uma variação visual e livre em torno da música, representada em seus acordes por uma sucessão de imagens abstratas de formas e cores em transformação.
Depois, em “Suíte Quebra-Nozes”, a música de Tchaikovsky serve de acompanhamento para a ação de pequenas fadas que, por meio de seu encantamento, produzem o orvalho que reveste plantas e flores em um bosque.
Eventualmente, os seres desse bosque –seus cogumelos, suas flores e até mesmo peixes de um lago –se transfiguram em dançarinos que executam performances através das várias modalidades musicais apresentadas.
Fica claro que as fadas simbolizam a mudança das estações do ano quando elas trazem o esmaecer do outono e, ao fim, a gelidez do inverno.
No episódio mais conhecido de toda a antologia, “O Aprendiz de Feiticeiro”, Mickey Mouse aparece como o ingênuo e travesso protagonista. Humilde servo de um poderoso feiticeiro, ele se aproveita de um momento de descanso de seu senhor para usar as propriedades místicas de seu chapéu mágico.
Como ele, Mickey transforma uma reles vassoura de pau num autômato: Pode assim realizar sua função de encher o poço com baldes de água sem se cansar ou se ressentir da tarefa.
Mickey aproveita o ensejo para tirar uma soneca –durante a qual sonha estar no controle das forças do céu e do mar –contudo, ao acordar, um imprevisto o aguarda: a vassoura tanto executou seu serviço que a casa do feiticeiro se alagou!
Logo em seguida, a versão idealizada por Walt Disney de “A Sagração da Primavera”, onde ele, por sua vez, visualiza o surgimento da vida na Terra, que começa com as mutações cósmicas, mostrando o planeta em seu estágio geológico inicial com ventos, fogo e maremotos, para então se tornar propício às formas de vida (os protozoários, depois os peixes, e enfim os dinossauros), numa sequência que deixa bastante clara a influência desta animação para Terence Malick em uma das passagens de seu “A Árvore da Vida”.
Após uma bem-humorada apresentação da linha que define a trilha sonora –um feixe luminoso que expressa timidez inicialmente –somos introduzidos no episódio “Pastoral”, de Beethoven.
Considerado algo grosseiro por alguns críticos, esse trecho mostra vários grupos de criaturas oriundas da mitologia grega –unicórnios, faunos, pegasus e centauros –todos em geral se divertindo num dia no campo. Os centauros em particular experimentam seguidos rituais de sedução e encontro, incentivados por pequenos querubins desnudos –a nudez, neste e em outros momentos de “Fantasia” não é vista com tanto tabu assim.
Mais tarde, Zeus irrompe ao céu com uma tempestade –uma mera brincadeira para ele –enquanto joga relâmpagos na terra, forjados por Vulcano. Mas, Zeus logo se entedia e dorme, deixando que o sol se ponha e a noite chegue.
No episódio seguinte, “A Dança das Horas”, extraído de “La Gioconda”, de Ponchielli, os animadores de Disney materializam, ao seu jeito muito particular, as horas do dia na forma de grupos sucessivos de dançarinos. No primeiro deles (um desengonçado e ao mesmo tempo delicado bando de avestruzes), as bailarinas representam o amanhecer; no segundo (vários hipopótamos!), é simbolizada a luz radiante do meio-dia; no terceiro (elefantes, todos, diga-se, calçados de sapatilhas de balé!), as nuances suaves do entardecer são personificadas, para então, no quarto grupo (vários crocodilos), a escuridão da noite aparecer.
Ao fim, uma celebração contrapõe com graça todos os grupos de dançarinos, deixando evidentemente sobrepujados os representantes da noite pelos representantes do dia.
O último segmento faz uma fusão de duas músicas bastante distintas –quase antagônicas –“Uma Noite No Monte Calvo”, de Mussorgsky, e em seguida, “Ave Maria”, de Schubert.
Em “Monte Calvo”, segundo a lenda enxergado como a morada dos seres das trevas, a animação choca os mais habituados à inocência da Disney com um retrato sombrio e imponente do próprio Diabo (!) que, na noite do Dia das Bruxas, conclama sua horda de seguidores pecaminosos e apavorantes –num desfile que remete às criaturas demoníacas ilustradas pelo artista Hyeronimus Bosch –para um ritual caótico de dança e degeneração.
A festa profana é interrompida com o primeiro badalar dos sinos –o chamado dos fiéis, durante as primeiras horas do novo dia à Igreja –o que arremessa os seres das trevas de volta ao seu covil, numa transição de uma música para a outra.
Erudito, culto e frequentemente a frente de seu tempo, “Fantasia” é visto como inacessível por uns, e estupendo por outros. Para mim, ele é sublime em sua originalidade artística.

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