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sexta-feira, 19 de julho de 2024

História Real


 Quando surgem os primeiros créditos na tela, emoldurados num céu estrelado, as informações ali contidas, pode-se presumir, eram inesperadas: Uma produção dos Estúdios Disney; Um filme de David Lynch (!). Os cinéfilos do mundo todo, até então, jamais conceberiam uma união entre o mago dos sonhos (e pesadelos), David Lynch, com a empresa família do camundongo Mickey –no entanto, aí está.

Como era de supor, entretanto, “História Real” é, de fato, uma presença ligeiramente destoante na filmografia de David Lynch, abraçando uma trama simples, linear e identificável de ponta a ponta. A sua direção, sempre habilmente climática, e sempre atenta às nuances nada óbvias da narrativa, nos leva para uma idílica cidadezinha interiorana de Iowa –uma ambientação até comum nas obras de Lynch –onde seu inesperado protagonista nos é apresentado. Alvin Straight (o expressivo Richard Farnsworth) é um idoso de 73 anos e, já de cara, somos tornados cientes de sua fragilidade. Seus quadris não estão bem (ele cai na cozinha e sem ajuda é incapaz de levantar), sua visão, obviamente, já não é a mesma, afetada pela diabetes e sua filha Rose (Sissy Spacek), apesar das limitações intelectuais, precisa monitorá-lo todo o tempo. Contudo, Alvin sabe que tem uma última incumbência a cumprir: Seu irmão Lyle (Harry Dean Stanton, aparecendo somente na emocionante cena final), com quem não fala há dez anos, sofreu um derrame. E a possibilidade de perdê-lo leva Alvin a rever a rusga que os afastou durante uma década, decidindo por ir ao encontro dele.

Só há um pequeno problema: Lyle mora em Wisconsin, a 390 km de distância, e tudo que Alvin dispõe como meio de transporte para chegar lá é o único maquinário que pode operar, um pequeno cortador de grama. Ainda assim, ele decide empreender essa jornada, sem contar com outros recursos, ou auxílios (que até aparecem num ou noutro momento, e sempre são recusados) mais ou menos como uma forma de fazer desse trajeto uma espécie de penitência ao fim da qual Alvin talvez possa perdoar o irmão e a si mesmo.

A história de Alvin Straight realmente ocorreu –como aponta, aliás, o título nacional –em meados de 1994, virando um artigo publicado no The New York Times naquele mesmo ano e, mais tarde, despertando profundo interesse na produtora Mary Sweeney que se encarregou de escrever o roteiro (junto de John Roach) e apresentá-lo à David Lynch. Por sua composição comovente, o veterano Richard Fransworth foi indicado ao Oscar 2000 de Melhor Ator, perdendo a estatueta para Kevin Spacey, por “Beleza Americana”,

Na filmografia de David Lynch, não resta qualquer dúvida, que “História Real” é um corpo atípico, longe de seus delírios fragmentados e surreais. Contudo, ele dialoga em alguns momentos com pelo menos outras duas obras do mestre Lynch: Com “Coração Selvagem” na cena (carregada de algum simbolismo) em que Alvin testemunha o atropelamento de um cervo (o comportamento esquizofrênico da motorista remete aos personagens mais usuais de Lynch); e com “Veludo Azul”, na primeira parte, que precede a viagem de Alvin, onde são capturados breves instantes da vida numa comunidade normal (banal até) norte-americana –é David Lynch ressaltando, em pequenos aspectos minimalistas, as desconfianças, suspeitas e intrigas a brotar na índole de gente comum.

sábado, 22 de junho de 2024

Divertida Mente 2


 Divertida Mente”, o longa de animação tão perfeito da Pixar e que, em geral, servia como exemplo para o argumento da empresa em não se dedicar à realizar continuações e sim criar produções originais; eis que “Divertida Mente” ganha, agora, uma continuação! As razões para isso são menos as decisões de orientação artística de seus normalmente bem-intencionados realizadores e mais a ganância dos tubarões executivos que controlam o dinheiro da empresa e que nela mandam de fato: A Disney (proprietária da Pixar, só pra lembrar) agora tem seu próprio serviço de streaming, o Disney Plus, e a intenção dos executivos é recheá-lo de conteúdo exclusivo para atrair assinantes. E certamente é mais interessante para as campanhas de marketing que esse conteúdo exclusivo traga, de novo e de novo, os personagens já estabelecidos, já conhecidos e oriundos de grandes sucessos de outrora, para novas produções que o público só haverá de encontrar lá.

Assim, eis que os artesões da Pixar tiveram, portanto, que voltar atrás em suas palavras e fazer a continuação que não estava em seus planos. Entretanto, saber de antemão que isso não era previsto torna, em alguns momentos, a apreciação de “Divertida Mente 2” até que admirável: A nova animação flui com uma trama de progressão quase natural para com sua premissa original; é espontânea, criativa e digna; e, tal e qual o anterior, traz uma mensagem valiosa, com lições pertinentes e momentos de genuína emoção, tudo isso, numa voltagem menos intensa que no primeiro filme, é verdade, mas ainda gratificante o suficiente para aplaudirmos a existência desta segunda parte.

Agora um pouco mais crescida que no primeiro filme, a menina Riley está adentrando a adolescência. E tal etapa da vida, é sabido, vem com transformações radicais no modo de ser e de se comportar. Também no interior, essas mudanças se fazem notar: Em sua mente, regida pelas cinco emoções que a Pixar converte em personagens individuais, Alegria (voz de Amy Poehler), Tristeza (voz de Phyllis Smith), Nojinho (voz de Liza Lapira), Raiva (voz de Lewis Black) e Medo (voz de Tony Hale), novidades começam a chegar, na forma de emoções novas que Riley haverá de experimentar nos próximos dias decisivos de sua vida estudantil –são elas a Ansiedade (voz de Maya Hawke), Inveja (voz de Ayo Edebiri), Vergonha (voz de Paul Walter Hauser) e Tédio (voz de Adele Exarchopoulos) –há também uma senhorinha, Nostalgia (voz de June Squibb), sempre censurada pelas demais por chegar prematuramente!

Apaixonada jogadora de hóquei no gelo, Riley parte para uma colônia de treinamento com suas amigas e, nos dias que se seguem, precisa lidar com circunstâncias que desafiam sua maturidade: Suas duas melhores amigas contam que vão, juntas, mudar de escola. O que deixa Riley sentindo-se sozinha, necessitando de novas companhias. Isso a leva a tentar enturmar-se com as garotas mais velhas e mais experientes, o que vem com uma dose a mais de cobrança e de pressão –afinal, não é fácil para uma adolescente insegura e com seu caráter em formação mostrar-se legal e confiante às novas amigas da forma como ela gostaria.

Essa é a trama geral que acompanha “Divertida Mente 2”, porém, sua trama verdadeira, é a que se desenvolve dentro da mente de Riley, a envolver suas emoções, que agem e reagem a partir dos acontecimentos vivenciados por Riley. Para Alegria –a emoção que sempre norteou Riley desde o começo –manter-se fiel às suas convicções (aquelas formadas a partir de valores inocentes de criança) é uma prioridade, mas Alegria, ao refutar toda lembrança de fracasso impede Riley de aprender com seus erros. É essa brecha da qual Ansiedade se aproveita; emoção complexa, nascida a partir do temor de errar e, portanto, irrequieta a ponto de tentar prever incessantemente cada passo iminente, Ansiedade sabe que, com o crescimento, uma nova Riley, menos criança, está surgindo e, para tanto, ela crê que não há mais espaço para suas antigas emoções. E é assim que Alegria, Tristeza, Nojinho, Medo e Raiva são expulsos da cabine de controle da mente. Incapaz de sentir suas emoções originais, resta a Riley a Ansiedade, a Inveja, a Vergonha e o Tédio para tentar lidar com as novas situações com as quais se depara, como a disputa por uma vaga no time de hóquei aos olhos na exigente treinadora (que, pela primeira vez, não a trata feito criança!), o afastamento das antigas amigas (e toda a mágoa implícita que vem com isso), as tentativas perplexas de impressionar as amigas novas, e a árdua tarefa de lidar com suas profundas frustrações quando muitas dessas expectativas não acabam atendidas.

Nesse meio-tempo, Alegria e os outros empreendem toda uma nova jornada –em grande medida, até bem semelhante à do filme original –para tentar encontrar um meio de regressar à torre de comando antes que Ansiedade, na histriônica ilusão de resolver tudo sozinha e por conta própria, ponha tudo a perder.

Embora falte a este segundo filme o impacto, a originalidade e a intensidade de emoções do primeiro (faz falta, por exemplo, um personagem tão comovente e memorável como era Bing Bong), “Divertida Mente 2” ainda assim surpreende, emociona e faz pensar num nível que o torna até mais cativante aos olhos dos adultos que das crianças. E essas são qualidades notáveis que a Pixar, em seus últimos projetos, andou tendo dificuldade de encontrar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Lightyear


 É comum notarmos que alguns dos grandes autores do cinema versam suas vastas filmografias em torno de um mesmo tema –tomamos Woody Allen ou Ingmar Bergman, como exemplos, nos quais as obras vislumbram as neuroses dos relacionamentos modernos (no caso de Allen) ou o vazio existencial da condição humana (no caso de Bergman). A Pixar, claro, não é um autor de cinema, sequer é uma pessoa; ela é, sim, um estúdio de animação hoje um tanto quanto independente dos Estúdios Disney que inicialmente lhe proporcionou a criação de seus aclamados longa-metragens. Contudo, não deixa de haver uma espécie de impressão que une, senão todas, a grande maioria das obras da Pixar num único enredo; pelo menos, os seus mais consagrados exemplares: Um apego tocante ao passado.

Nessa ânsia de, volta e meia, voltar seus olhos ao passado, mesmo que avançando rumo ao futuro, a Pixar deu à luz esta produção lançada em 2022 e que, embora tenha seus méritos, pode ser visto como o início de uma fase descendente da Disney e da Pixar onde suas realizações já não conquistavam o impacto dos áureos tempos.

Os créditos iniciais especificam: Em 1995, a Pixar lançou seu primeiro longa animado, “Toy Story”, a girar em torno da rixa entre dois brinquedos (o astronauta Buzz Lightyear e o cowboy Woody) pela adoração de seu dono, o menino Andy. O boneco, Buzz Lightyear, era por sua vez, inspirado no personagem de um filme que supostamente foi lançado naquele universo, e é esse filme específico que, agora, os artesões da Pixar transformam em realidade. Por isso, nele, Buzz Lightyear surge como um astronauta de carne e osso (dublado, em inglês, por Chris Evans, em português, por Marcos Mion) arremessado nas ironias científicas e metafísicas de uma missão que, de certa forma, lhe cobra a vida inteira (algo que curiosamente remete ao arrebatador “Interestelar”, de Christopher Nolan); e aí, nessas entrelinhas de ordem dramática, notamos o diferencial que transforma a Pixar num estúdio de animação tão singular –pena que tal singularidade foi, com o tempo, desaparecendo em meio à pretensões mercadológicas que dispersaram seu público. E tais lapsos, não se engane, leitor, também começaram aqui...

Ávido por desempenhar a contento seu papel de patrulheiro espacial, o astronauta Buzz Lightyear vê a nave na qual ele e centenas de outros passageiros repousavam em animação suspensa descer num planeta inóspito, povoado de insetos gigantes ameaçadores e plantas carnívoras. Ao tentar escapar de lá, Buzz comete um erro que encalha a nave no lugar e pelo qual ele haverá de culpar-se nos anos seguintes: Uma nova tentativa de partir logo é engendrada, mas, Buzz deve testar o cristal que alimenta o motor e assim ter certeza se ele consegue abastecer a nave para uma nova e profunda empreitada nas estrelas. Contudo, a cada teste, a nave de Buzz executa um percurso através do espaço gravitacional do planeta que, para ele, representa 4 minutos, mas para todos que ele deixou para trás, representam 4 anos (!). Como em sua persistência, Buzz executa dezenas e dezenas de testes, ele vê cada uma as pessoas que conhece –sobretudo, a colega e amiga Alicia Hawthorne –envelhecer e morrer.

Na sua última missão –justamente aquela na qual ele finalmente consegue encontrar a composição correta do cristal que alimenta o motor para empreender o vôo espacial –Buzz regressa ao planeta e descobre que ele foi invadido por robôs ameaçadores, controlados por um misterioso vilão conhecido apenas como Zurg (e as origens reais desse vilão, para além das motivações de natureza cômica e referencial mostradas em “Toy Story 2”, são surpreendentes e reflexivas). Aliado à recruta Izzy Hawthorne (neta de sua falecida amiga), Buzz deve garantir a segurança das pessoas na cidade que formou-se dentro do campo de força da nave durante todas as décadas em que esteve em missão, e assim dar continuidade ao que ele pensa ser seu objetivo de vida.

Ainda que traga aquela melancolia e aquele subtexto emocionante sobre a finitude da vida que sempre impregnou de originalidade as obras da Pixar, tal elemento vem, em “Lightyear”, comprometido por uma certa superficialidade, fruto possivelmente do fato de que seu diretor, Angus MacLane (de “Procurando Dory”) pertence à segunda geração de realizadores do estúdio, e não à primeira, da qual vieram os artistas verdadeiramente insubstituíveis e que assinaram as obras-primas vindas de lá, como Pete Docter, Andrew Stanton (produtores deste longa) e John Lasseter.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Elementos


 A primeira (e até então única) ocasião em que a Pixar resolveu contar uma história de amor, foi em “Wall-E”. É curioso notarmos que um gênero tão comum nas animações tradicionais dos Estúdios Disney –o romance –havia sido tão pouco explorado (evitado até) por sua outra produtora. Agora, a Pixar torna a versar sobre os caminhos tortuosos do amor neste “Elementos” que difere um pouco do que foi feito em “Wall-E”.

Em primeiro lugar, ao contrário de “Wall-E”, em “Elementos” quem assume o protagonismo é a parte feminina do casal central. E em segundo lugar, estão em pauta, na premissa que rege sua narrativa, as predisposições que impedem que os dois personagens principais componham um casal –lá estão os motivos que os separam, muito mais que aqueles que os unem. Imediatamente, podemos supor, com larga chance de acerto, que é “Romeu & Julieta”, de Shakespeare, a grande pedra fundamental na qual este filme se apóia.

Num mundo fantasioso habitado por elementos vivos –o qual os artesões da Pixar têm imenso critério e carinho para conceber –existem os seres constituídos de água, os de madeira, os de ar e os de fogo. São os feitos de fogo, justamente pelo perigo incandescente de seu contato, os mais perigosos e, logo, aqueles vítima de certa discriminação. Chegados como imigrantes à Elemental City (a metrópole que, à maneira desigual desse mundo curioso tenta abarcar todas essas espécies), Brasa e Fagulha são seres de fogo e, no preconceito que experimentam, Brasa encontra um combustível para sua obstinação: Empreendedor, ele haverá de, nos anos seguintes, montar um negócio (um loja de doces) voltado exclusivamente para seus semelhantes tão discriminados. Esse sonho, Brasa cultiva com a própria filha, Faísca, que ao crescer reúne qualidades que a fazem a óbvia sucessora do pai em seu negócio.

Entretanto, seu destino toma novos rumos exatamente na véspera da decisão definitiva de seu pai deixar-lhe a loja nas mãos: Um cano estourado traz até as dependências do estabelecimento, o errático Gota, um ser feito de água como os muitos que habitam a região central da cidade, longe do subúrbio onde Faísca e os seus vivem.

Medroso, burocrata e evasivo, Gota é o retrato de uma geração nascida e crescida em meio à privilégios. Ainda assim, a medida que seu convívio com Faísca se torna necessário –os dois são instruídos a descobrirem juntos a origem da pressão excessiva nos encanamentos, do contrário, a loja da família de Faísca será fechada –Gota vai revelando a ela (e ao público) qualidades inesperadas como cavalheirismo, cumplicidade e empatia.

Para além da ilustração mais óbvia possível de um romance proibido (uma menina feita de fogo e um jovem feito de água!), esta obra cheia de propriedade da Pixar não apenas equilibra maravilhosamente bem as facetas dramáticas (na seriedade das suas emoções; e na candura de seu romance) e as cômicas (o retrato rico em minúcias visuais de um mundo imaginado que funciona dentro de uma lógica interna), como também vale-se da concepção de seus personagens para uma interessante avaliação de índoles que, apesar dos pesares, nunca soa simplista: Faísca é, como se poderia imaginar, explosiva e temperamental, qual o fogo que representa; e Gota, emotivo, transparente e adaptável, tal e qual o elemento de onde se origina –esses subterfúgios deixam sua obviedade de lado quanto atendem aos propósitos bastante em voga nos meios de comunicação de uma releitura do romance moderno, onde a mulher responde pela metade mais proativa do casal.

Situado num meio-termo entre a genialidade inconteste (caso dos brilhantes “Up-Altas Aventuras”, “Toy Story 3”, “Divertida Mente” e “Viva-A Vida É Uma Festa”) e a incapacidade para chegar lá (como o mediano “O Bom Dinossauro” ou a Trilogia “Carros”), “Elementos” é uma obra agradável, simpática e cheia de boas intenções ao refletir com descontração, inspiração e nenhum pedantismo alguns temas de intolerância e choque geracional do mundo de hoje, transfigurados numa contagiante animação para o entendimento das crianças pequenas.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A Pequena Sereia


 Nos primórdios de sua história como estúdio de animação, a Walt Disney valeu-se de seu maior e mais retumbante sucesso –o inovador longa-metragem animado “Branca de Neve e Os Sete Anões”, de 1937 –para revitalizar os números de sua bilheteria por meio de sucessivas reprises cinematográficas ao longo do Século XX, algo que também ajudou a transformar aquela animação numa lembrança indefectível para gerações inteiras de crianças. Contudo, hoje os tempos são outros. Dinheiro, ao que parece, não é mais problema aos cofres dos Estúdios Disney, entre os mais poderosos e influentes na Hollywood atual. Logo, os relançamentos de clássicos do passado não fazem mais sentido para os executivos donos do dinheiro e das decisões. Ao invés de celebrar a excelência de seu legado, atitude que os relançamentos de “Branca de Neve” e outros clássicos também proporcionava, os Estúdios Disney querem agora reciclá-lo: Toda uma nova geração de expectadores, desde pelo menos “Alice No País das Maravilhas”, de Tim Burton, lançado em 2010, está de fato tendo contato com os clássicos animados que transformaram a Disney no que ela é hoje, só que, não no formato em que eles se consagraram, mas sim como versões live-actions proporcionadas pelos mais apurados efeitos visuais de última geração, capazes de converter em encenações de carne-e-osso o que outrora somente a animação era capaz de mostrar.

E é claro que os primeiros da fila foram as mais ressonantes e significativas realizações do estúdio. Dentre elas, poucas têm a importância, a relevância e o primor capaz de igualar “A Pequena Sereia”, de 1989. Concebido num período em que a Disney experimentou altos e baixos (mais baixos do que altos...) em sua administração, a animação obteve tamanho êxito que restabeleceu o status de maior estúdio de animação do mundo, o qual, desde então, a Disney soube manter entre muitos sucessos e poucos fracassos.

Coube ao diretor Rob Marshall (do ganhador do Oscar “Chicago”) o desafio de recriar, na medida do possível, a magia incomensurável do longa animado de John Musker e Ron Clements, e este novo “A Pequena Sereia” –como, aliás, muitos dos live-actions da Disney –já começa com a desoladora sensação de que este objetivo é, assim, inatingível. O tempo todo, do início ao fim, o roteiro de Jane Goldman e David Magee cai na mesma armadilha que os outros live-actions antes deles caíram; o de meramente acrescentar novas tonalidades à trama já conhecida, corrigindo meras imperfeições pontuais minúsculas que nada interferiam na excelência do todo, e refazendo com desleixo toda uma narrativa que, antes, pulsava de ímpeto criativo. Assim, somos apresentados, ao mundo submarino habitado por Ariel (Halle Bailey, uma interessantíssima atriz de etnia afro-descendente, diferente da personagem animada, mas que revela-se uma bela escolha), filha mais jovem do Rei Tritão (Javier Barden, numa ótima recriação, na medida do possível, do imponente personagem animado). A dinâmica entre Ariel e seu pai é espelhada na animação: Tritão, severamente indisposto com o mundo da superfície (neste filme, é revelado que os humanos foram responsáveis pela morte de sua esposa) enxerga a todos com desconfiança e hostilidade, logo é com um misto de aflição e intolerância paterna que ele assiste, perplexo, ao fascínio incontornável que Ariel desenvolveu por aquele mundo, a ponto de montar uma espécie de coleção dos utensílios humanos que eventualmente vão parar nas águas dos oceanos.

Ao conhecer e salvar a vida do Príncipe Eric (Jonah Hauer-King, da série “Teto Para Dois”), Ariel toma a decisão definitiva de tentar ingressar naquele mundo para sempre: Ela forja um pacto com sua tia renegada Ursula, a Bruxa do Mar (Melissa McCarthy, numa personagem inspirada na persona do travesti Divine, de “Pink Flamingos”) no qual troca sua voz de sereia pela forma terrena de mulher. Entretanto, sem saber, Ariel estará corroborando ainda mais suas complicações junto à ardilosa bruxa: Tendo o prazo de três dias para obter de Eric um beijo de amor verdadeiro –e assim evitar de transformar-se em prisioneira da bruxa –Ariel abre mão justamente do único meio que Eric teria para reconhecê-la; do salvamento, no qual vislumbrou a mulher que deseja desposar, Eric só se recorda de sua voz bela e encantadora!

É a partir desses expedientes –basicamente, os mesmos manejados com habilidade lendária pela animação –que o filme de Rob Marshall se incumbe, adicionando à eles os efeitos visuais de ponta que recriam com fotogenia inacreditável cenários inteiros, cenas de ação alucinantes, além de personagens essenciais, como o caranguejo Sebastião (voz de Daveed Diggs) e o peixe Linguado (voz do garoto Jacob Trambley), embora tais personagens, no realismo animal com que a encenação live-action os materializa, percam sua expressividade da animação. Rob Marshall emprega com iniciativa e propriedade toda sua notória experiência nas sequências musicais (às quais ganham o acréscimo de uma canção exclusiva –e um bocado desnecessária... –para o Príncipe Eric), onde percebemos o talento imenso de Halle Bailey como cantora.

Competência visual e perfeição técnica não são, deveras, os problemas deste longa-metragem, contudo, os live-actions da Disney potencializam ainda mais uma circunstância que sempre incomodou em casos, por exemplo, de refilmagens: A eterna questão se é, de fato, necessária a recriação de uma obra que já soava competente e bem realizada antes. As refilmagens (existentes desde os primórdios do próprio cinema) se provaram válidas em casos, nos quais, uma repaginação técnica, artística e/ou temática tornava relevante a oportunidade de recontar aquelas histórias, no entanto, no caso dos live-actions da Disney, a norma geral, parece ser justamente a preservação dos elementos das obras clássicas como eles são –e tentar fugir desse caminho resulta ainda mais catastrófico, como atestou “Mulan” –o que nos leva à outra questão: Por que refazê-los tendo os ótimos exemplares originais à disposição, a não ser por conta da contumaz e alardeada crise de imaginação do cinema comercial hollywoodiano?

Ao que parece, tão cedo os Estúdios Disney não encontrarão uma resposta...

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A Canção do Sul


 Para os padrões de representatividade politicamente corretos de hoje, a existência de “A Canção do Sul” é praticamente uma ofensa. E o fato da produção ser oriunda dos Estúdios Disney –talvez, a mais emblemática instituição de entretenimento voltado à família e aos bons costumes –é praticamente uma heresia!

Lançado em 1946, numa época longínqua onde conceitos e valores atuais não estavam ainda em voga, “A Canção do Sul” mesclava a inocência das histórias infantis com o ímpeto de retratar contornos sociais de seu tempo através da ótica particular de seus realizadores, acompanhado de um apuro técnico impressionante até para os dias de hoje: “A Canção do Sul” antecipou, em décadas (!), a inovação de “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, ao juntar atores e personagens de animação em cena (inclusive trazendo, também ele, o personagem de um coelho, Quincas!).

Entretanto, o elemento que tirou “A Canção do Sul” de seu esquecimento eventual, nos últimos anos, e o tornou infame não tem nada a ver com seu aparato visual, nem com sua vitória na categoria de Melhor Canção Original no Oscar 1948, mas sim com o curioso ponto de vista adotado para narrar sua história: O das pessoas do Sul dos EUA, escravagistas declarados, que adentraram a Guerra de Secessão a fim de lutar em favor do regime escravocrata.

Naquele viés de inocência inerente a uma produção Disney, o filme de Wilfred Jackson não apenas retratava o Sul como um lugar de gente pacata, hospitaleira e benevolente, como também vai muito além; eles, e seu modo de vida, soam na narrativa com absoluta normalidade, cheios de razão de ser.

“A Canção do Sul” é sobre os jovens Johnny (Bobby Driscoll) e Ginny (Luana Patten). E sobre como o iminente divórcio de sua mãe (Ruth Warrick, de “Cidadão Kane”) ameaça estilhaçar precocemente sua pureza de infância. A mim de contornar essa desilusão, eis que surge Tio Remus (James Baskett) na narrativa. Negro, escravo da propriedade onde as crianças moram –ainda que esse fato permaneça sempre subentendido –Tio Remus é um contador de histórias nato. E com isso, introduz às crianças as aventuras do coelho Quincas, sempre às voltas com o perigo representado por seus algozes, o ardiloso João Honesto (uma raposa) e o truculento Zé Grandão (um urso). Esses momentos inserem sequências episódicas de animação ao longo da trama em live-action; somente na sequência final (fabulosamente bem executada), a animação e o filme real acabam se mesclando.

Foram, no entanto, os subtextos de “A Canção do Sul” que, com o tempo, passaram a alarmar cada vez mais e mais cinéfilos: Não obstante um famigerado subgênero do qual ele é pioneiros, o magical negro (onde um personagem sempre interpretado por um ator negro surge do nada para proporcionar sabedoria e soluções fáceis aos transtornos do protagonista branco), “A Canção do Sul” parece tentar justapor as sequências animadas como uma espécie de fuga da realidade, por meio da qual o benevolente Remus protege os pequeninos das verdades duras da realidade e lhes ensina lições valiosas (tal e qual um bom e velho filme da Disney...), entretanto, há algo de estranhamente tóxico, e até contraditório em muitos momentos. Se em determinado trecho ele parece sugerir que nossos papéis da sociedade são pré-determinados e devemos nos sujeitar a esse fato (o escravo obediente e feliz retratado em outros filmes como “E OVento Levou”, cuja oscarizada Hattie McDaniel também integra este elenco), em outros, ele faz uso da lábia e da esperteza como uma forma de lograr ingenuamente (e temporariamente) os opressores. Se num ponto ele é a alegre figura que acata as ordens dos pais e conforta a aflição dos filhos, noutro, o conteúdo de suas estórias é visto como prejudicial aos pequenos –e nessa crença unilateral de suposta bondade, percebemos que o personagem não sabe realmente quem é, nem o que realmente deseja.

Até mesmo no breve momento em que Remus aparece adquirir certa consciência de que o único caminho para uma vida melhor seja partir dali, algo vem para impedi-lo de realizar essa intenção (o acidente do menino) surgindo, na trama, como uma providência, em última instância, positiva, pois impediu Remus de ir embora.

Talvez –e eu digo ‘talvez’ porque “A Canção do Sul” pertence a uma época longínqua demais para se poder traçar certezas absolutas acerca das orientações subliminares em seu processo de criação –os vilões de animação, João Honesto e Zé Grandão, simbolizem o homem branco em suas intenções nada lisonjeiras carregadas de perfídia (nos olhos traiçoeiros da raposa) e de genuína incapacidade para aceitar algo que seja diferente (na postura irredutível e acéfala do urso), o que colocaria Quincas, o coelho esperto e perspicaz, como uma variação do próprio Tio Remus e sua triste e mal-fadada crença na agilidade para desvencilhar-se por toda a vida dos ditames do homem branco.

Pretensamente sensível e, ao mesmo tempo, ignorante para com aspectos alarmantes do próprio contexto que se propõe a retratar de modo tão particular, “A Canção do Sul” pode não ser o manifesto racista que os xiitas tanto pintam na internet afora –e sua mensagem acerca do poder benéfico e transformador do simples ato de contar uma história permanece bela, poderosa e imaculada –mas, traz, guardadas na ingenuidade atroz de seu retrato cheio de omissões, uma série de lamentações históricas que, de forma muito peculiar, foram varridas para baixo do tapete, soterradas embaixo de historinhas felizes e bobas, a esconder uma verdade que deve ser conhecida e compreendida para que injustiças e desigualdades jamais voltem a se repetir.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Jungle Cruise


 Baseado em um brinquedos dos parques temáticos da Disney –e, por aí, já se percebe a origem pouco lisonjeira do projeto –“Jungle Cruise” é parte “Piratas do Caribe”, parte “Caçadores da Arca Perdida” com uma pitada de “Uma Aventura Na África”.

O início, mostrando a perplexa personagem de Emily Blunt, a Dra. Lilly Houghton, a tentar convencer os céticos, irredutíveis e machistas cientistas do início do Século XX de então a financiar uma expedição à Amazônia, já bebe muito das aventuras de Indiana Jones; e essa proximidade nada discreta se intensificará ainda mais conforme o filme avança com nítidas inspirações –algumas que chegam a beirar a cara-de-pau. Temos, por exemplo, os vilões oriundos da Alemanha (na forma do monarca vivido por Jesse Plemons, obcecado por encontrar uma flor de propriedades místicas), as aventuras logo transferidas, da Inglaterra vitoriana, para a selva brasileira; as cenas de ação inventivas, extensas e detalhadas ao estilo Steven Spielberg e, por fim, a busca pelo tesouro, transcorrida ao longo da trama e pontuada de elementos cheios de complexidade e rica cenografia cinematográfica.

São nessas condições que o filme, dirigido por Jaume Collet-Serra (do suspense “Águas Rasas”), chega à Amazônia antes mesmo de seus créditos iniciais, não tardando a reunir seus protagonistas, no caso, Lilly e o capitão de uma modesta embarcação de rio, Frank (o truculento, porém, carismático e divertido Dwayne Johnson), além do apalermado irmão dela, o afeminado MacGregor (Jack Whitehall, de “O Quebra-Nozes e Os Quatro Reinos”).

Eles empreendem uma viagem ao coração da selva amazônica, onde Lilly acredita que encontrará o segredo da fonte da juventude, uma flor cuja pétala milagrosa cura qualquer mal.

A vertiginosa aventura tem por objetivo emoldurar a dinâmica entre os personagens: Frank é ardiloso e golpista, não confia em ninguém e fornece constantes motivos para que ninguém confie nele; Lilly carrega aquela postura altiva comum a todas as mocinhas protagonistas em geral –é impetuosa, moralista, obstinada e altruísta. Juntos (como era de se supor), eles não se bicam, no entanto, as convenções do roteiro não resistem ao ímpeto de reuní-los romanticamente, e de um ponto em diante, esse romance forçado só começa a funcionar de fato porque Emily Blunt e Dwayne Johnson (bons atores) imprimem certa sinceridade à essa relação, a despeito do fato de serem inicialmente incompatíveis. A trama cresce um pouco a partir do momento em que um ligeiro plot twist revela novas e inesperadas motivações da parte do personagem de Johnson.

Por outro lado, se em certo ponto, os protagonistas encontram equilíbrio, o mesmo não pode ser dito dos dois núcleos de antagonistas (sim, este filme tem DOIS grupos de vilões!): Um deles, o já mencionado monarca germânico é apático, desinteressante e burocrático (proporciona um desânimo inevitável sempre que a narrativa o coloca em cena); já o outro núcleo, embora tenha relação com a reviravolta que o filme, lá pelas tantas apresenta, parece servir à infalível necessidade mercadológica de abarrotar o filme de efeitos visuais: Trata-se de Aguirre (o mesmo personagem retratado por Klaus Kinsky, em “Aguirre-A Cólera dos Deuses”, de Werner Herzog, aqui vivido por Edgar Ramirez), desbravador espanhol surgido aqui como um ser monstruoso amaldiçoado pelas propriedades da selva, numa criação semelhante ao Dave Jones de “Piratas do Caribe-O Baú da Morte”.

A profusão atordoante e francamente incômoda de ação e efeitos visuais de “Jungle Cruise” deixa bem claro o quanto o filme foi concebido mais pelas deliberações de um comité de estúdio e menos pelo bom senso de seu diretor (ainda que Jaume Collet-Serra faça sua parte orquestrando da melhor maneira possível todas as facetas exorbitantes da produção), resultando numa obra forçosamente comercial e, nesse sentido, até mesmo esquizofrênica: É demasiadamente frenético (até mesmo em momentos em que narrativa carecia de pausa para se harmonizar), engraçado até passar do ponto, visualmente tão lindo que chega a ser ofensivo (até mesmo os animais em cena são digitais) e elaborado com base nas fórmulas mais evidentes do mainstream. Sua salvação, quando muito, reside em pequenos detalhes que o fazem agradável e eficaz: O carisma do bom elenco, o exotismo inerente da premissa, o teor nostálgico de aventura à moda antiga presente na ambientação. São esses elementos que garantem o interesse do público e o diferencial do projeto –e, de repente, serão eles quem viabilizarão a realização de suas continuações.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Cruella


 Em princípio, parece que “Cruella” segue a fórmula estabelecida por “Malévola”, na qual narrativas clássicas da Disney (como “A Bela Adormecida”, no caso) ganham nova roupagem, sobretudo, no que diz respeito à revisão do papel de suas antagonistas, de vilãs unilaterais para criaturas mais ambíguas, humanas e incompreendidas.

E isso está definitivamente nos planos do diretor Craig Gillespie –cujo filme também se irmana aos live-actions da Disney refilmando suas clássicas animações como ocorreu com “Mulan” –embora Gillespie saiba acrescentar originalidade, audácia e brilhantismo o bastante para dar a este projeto autêntica razão de ser.

Pois, “Cruella” –cuja animação-fonte trata-se do encantador porém imperfeito “101 Dálmatas” (uma obra da Disney realizada quando o estúdio já empregava atitudes mais econômicas em contraste com os arroubos técnicos do passado) –parte daí para tentar humanizar e até justificar os atos e comportamentos de uma das mais maldosas vilãs de sua galeria: A terrivelmente intratável Cruella de Vil (Malvina Cruella na versão brasileira clássica do desenho).

É um tendência curiosa da parte de Disney, essa de aprofundar as motivações do mal a ponto de tornar seus vilões personagens relacionáveis de tal forma que a própria pecha de ‘vilões’ deixa de fazer algum sentido –e com isso, “Cruella” ganha também similaridades (como bem a crítica reparou) com o recente e elogiado “Coringa”, de Todd Phillips, onde um vilão de quadrinhos se torna pretexto para todo um ensaio sobre injustiça e opressão, além de palco para um estilo tão charmoso quanto anacrônico; “Cruella” se beneficia da brilhante reconstituição do movimento punk-rock da Londres dos anos 1970, na observação de seus figurinos (algo central à sua premissa), na própria atitude inconformista da personagem principal e, certamente, na trilha sonora (onde comparecem hinos inevitáveis como os fabulosos “Should I Stay Or Should I Go”, do The Clash, ou “Sympathy For The Devil”, dos Rolling Stones). Se “Malévola” remanejava características da trama principal a fim de  beneficiar a índole daquela que antes era a vilã da trama, em “Cruella”, o talento de Gillespie fala alto ao moldar sua protagonista sem desviar-se de seu temperamento problemático, egoísta e vingativo, mas centralizando-a com habilidade numa trama escrita com primazia, onde os elementos bem ordenados compõem, a um só tempo, uma história de origem, e um prequel eficiente e plenamente satisfatório dos eventos vistos na animação.

A garota Stella nasceu com uma peculiaridade que a tornava basicamente um alvo dos bullies durante sua fase escolar: Seu cabelo era naturalmente dividido entre completamente branco de um lado e completamente negro de outro. Sua mãe (Emily Beecham) até tenta conter o ímpeto combativo de Stella durante seu crescimento, até que, ao ser expulsa da escola, Stella e a mãe seguem rumo ao que parece ser um parente distante. Nos eventos que se seguem, Stella acaba vendo sua mãe morrer (!) pelo que ela passa o resto da vida acreditando ter sido um erro seu.

Já crescida (e interpretada com fulgor intuitivo e carisma inconteste por Emma Stone) e acompanhada de dois vigaristas de rua que se converteram em sua família, Jasper (Joel Fry) e Horacio (Paul Walter Hauser, ator presente no fantástico “Eu, Tonya”, também dirigido por Gillespie), Stella vê a chance de deixar a vida de roubos para trás e realizar seu antigo sonho de ascender como um gênio da moda: Ela consegue uma vaga de emprego na House Of Baroness, ateliê comandado pela milionária, lendária e tirânica Baronesa Von Hellman (Emma Thompson, esbaldando-se no papel).

Mas, como sempre, Stella não encontra terreno fértil para suas boas intenções, e a mesquinhez e a perfídia de todos os coadjuvantes que a cercam levam-na a deixar seu lado perverso e implacável aflorar: Assim, Stella deixa de ser a jovem compassiva (e de cabelo tingido com mais normalidade) para assumir a persona de Cruella que, além de ostentar orgulhosa sua cabeleira bicromática, representa uma misteriosa e competitiva rival para o papel de diva fashion até então esclusivo da Baronesa.

Esse elemento ao estilo “O Diabo Veste Prada” (cuja roteirista, Alice Brosh-McKenna, não por acaso, é argumentista deste filme ao lado de Kelly Marcel e Steve Zissis) determina o contexto de “Cruella” e ambienta o formidável e divertido duelo do qual o filme se incumbe: Não apenas as personagens são fulgurantes em suas índoles indomáveis como também as duas fenomenais intérpretes (as duas Emmas!) privilegiam o expectador com um embate sensacional de atuações moduladas na medida certa: sutil o suficiente para não caírem no caricato, expressivas o bastante para não se tornarem inapropriadas ao gênero que abordam.

O manuseio inspirado de suas ferramentas narrativas coloca “Cruella”, ao fim, no ponto ideal para o início da trama original vista em “101 Dálmatas”, entretanto, a dúvida vai ser como a continuação (já anunciada e com a presença de Emma Stone garantida) conseguirá se fazer relevante, afinal, o próprio “101 Dálmatas” já ganhou uma versão em live-action (muito antes da Disney transformar isso num hábito) nos anos 1990, onde Cruella era vivida por Glenn Close, até então uma atriz vista como perfeita para o papel. Contudo, depois deste trabalho efusivo e brilhante dificilmente alguém irá questionar a fabulosa adequação de Emma Stone à personagem.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Mulan


 É sempre lamentável num filme quando seus acertos ficam à sombra de seus equívocos; a versão live-action dos Estúdios Disney para “Mulan” tem um pouco de ambos, mas são os segundos que infelizmente prevalecem em seu cômputo geral.

Lançada em 1998, a animação “Mulan” sempre foi cercada de desdobramentos complicados –como elementos indiretos de travestimo, de homossexualismo, de crise de identidade sexual e da emancipação feminina –tratados com desenvoltura e descontração o suficientes para minimizar quaisquer polêmicas que a inspiração nessa antiga lenda chinesa (a de uma jovem mulher que disfarçava-se de homem para lutar no campo de batalha) poderia suscitar.

Ao chegar a vez de “Mulan” naquela ainda questionável iniciativa Disney de converter seus clássicos animados em filmes de atores com carne e osso, a diretora Niki Caro (de “O Zoológico de Varsóvia”) optou por realizar aquela que é, até aqui, a mais radical e distinta reformulação feita pela Disney: Nos casos de “Mogli”, “A Bela e A Fera”, “O Rei Leão”, “Alladin” e outros, a transposição narrativa do que era a animação para o que tornou-se filme atendia a uma fidelidade ocasionalmente irritante –embora alguns deles tenham se beneficiado de espertos realizadores para se fazer brilhar por conta própria.

Em “Mulan”, a preservação de aspectos que refletissem a animação parece menos importar e, se em princípio, esta é uma boa notícia –afinal, o que vemos é um novo filme e não uma repaginação apagada do que o desenho animado havia feito muito bem antes –o resultado é que a diretora Niki Caro nem sempre faz algo memorável com o que lhe sobrou.

A primeira decisão é que o novo “Mulan” não tem músicas; não é, portanto, um musical. E como todos sabem, as músicas eram um elemento indissociável no avanço daquela narrativa, inclusive com segmentos hoje antológicos como “Honrar A Todas Nós”, “Imagem” e “Homem Ser”. No lugar disso, a trilha sonora intermitente de Harry Gregson-Williams reproduz com sutileza pouco notável os acordes das famosas canções.

Na esteira dessa primeira decisão veem diversas outras que destoam muito da integridade do projeto e do que “Mulan”, em si, vinha a significar: Sai fora a cena icônica em que ela, ao substituir o lugar do pai idoso no acampamento militar, corta os próprios cabelos, sob pretexto de que soldados na China antiga não fariam isso –um mero detalhe histórico indiferente num filme todo definido por fantasia...

Também o núcleo de vilões sofre suas modificações: Chan Yu, um dos mais assustadores e sensacionais vilões a comparecer numa animação da Disney –pasmem –não é reutilizado aqui, sendo substituído pelo líder de invasores Bori Khan, interpretado por Jason Scott Lee (de “Rapa Nui-Uma Aventura No Paraíso”) que até faz um trabalho muito bom. Ao seu lado agora há uma feiticeira renegada (Gong Li, a estrela maior da China) cujas inserções mágicas na trama pouco lhe acrescentam –sua presença só vai fazer mais sentido próximo do final, quando filme já não pode mais ser salvo.

Assim, com a invasão da China em curso, o imperador (um envelhecido Jet Li) decreta que toda família da China forneça um indivíduo do sexo masculino para o alistamento militar.

Como a família de Mulan (Liu Yifei) consiste de seu velho pai (o sisudo Tzi Ma, incapaz de repetir os trejeitos tocantes do personagem na animação), sua mãe (Rosalind Chao, de “O Clube da Felicidade e da Sorte”) e sua irmã mais nova (Xana Tang, em substituição nada compensadora da personagem divertida da avó), a jovem resolve assumir às escondidas o lugar do pai na guerra, travestindo-se de rapaz.

A animação valia-se de humor para moldar um caminho leve, instigante e envolvente da protagonista onde ela começava como um cadete em treinamento para então, a despeito do disfarce sempre sob a ameaça de ser descoberto, sagrar-se heroína de guerra –e tão bem orquestrada a animação era que somente anos depois os fãs identificaram elementos incoerentes como a afeição do Capitão Shang, o indefectível interesse amoroso da protagonista, que parecia começar a gostar dela antes mesmo de ficar sabendo que é uma mulher (?!).

Nos tempos impiedosos de hoje, onde os internautas são capazes de escrutinar um filme desde o trailer e montam petições homéricas para cancelar aspectos dos quais mal entendem, a adaptação de Niki Caro tinha uma pressão imensa a lhe pesar –acima de tudo, porque “Mulan” é visto como uma obra importante na questão da representatividade.

Resultado: Nada do incerto personagem Shang, dividido em dois outros personagens mais, digamos, atenuantes: Um, o interesse ‘amoroso’, um soldado (Yoson An), que começa seu amigo e assim continua mesmo após a inevitável revelação (o romance é praticamente deixado de lado); e o outro, o capitão do regimento, vivido pelo magnífico Donnie Yen (de “Rogue One”), que assume ares paternais por Mulan.

Também o dragão Mushu, dublado por Eddie Murphy –e alvo de críticas subsequentes por parte do público chinês –ficou de fora, trocado pelas pomposas aparições de uma fênix digital que não fazem qualquer diferença à trama.

A espinha dorsal, na qual Mulan se destaca em meio ao treinamento militar mesmo sendo uma garota escondida entre homens, e segue seu caminho para revelar-se crucial na luta contra os vilões –salvando inclusive o Imperador –é obviamente a mesma, entretanto, os detalhes presentes na inspirada condução da versão animada foram alterados com tamanha drasticidade que os valores de produção mal podem ser enaltecidos aqui: Os figurinos, quando não cumprem o básico, deixam evidentes certa displicência, a direção de fotografia (a cargo de Mandy Walker) comete um erro particularmente amador numa cena específica e fundamental em que só precisava alterar o foco da câmera (é quando Mulan segura a espada do pai pela primeira vez), e as cenas de batalha (terreno no qual a falta de traquejo da diretora mais se expressa) são risíveis e redundantes, tanto em sua execução (jamais experimentamos o mesmo escopo épico passado pelo desenho) quanto pelas soluções dadas a elas pelo roteiro (a forma como Mulan provoca a avalanche sobre os inimigos aqui é o cúmulo da inverossimilhança e do non-sense).

Se há um elogio a se tecer pelo filme é que Niki Caro, no acréscimo de suas opções tão diferenciadas, privilegia o intimismo, valorizando sobretudo os momentos finais de Mulan em família e conseguindo instantes genuinamente emotivos –não chega, porém, a ser explicação nem consolo para o resultado tão aquém de seu potencial que ela obtém, ao adaptar uma animação vibrante e desigual que poderia ter rendido um épico de aventura suntuoso, cheio de novas camadas de interpretação.

Uma sina que parece amaldiçoar a maioria desses live-actions perpetrados pela Disney.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Dois Irmãos - Uma Jornada Fantástica

O grande problema de “Dois Irmãos” é a excelência notória de seu estúdio, a Pixar.
Explica-se: Tão habituado seu público cativo ficou, a esperar deles sempre uma obra-prima –de preferência, capaz de arrancar lágrimas insuspeitas do expectador como o fazem sem esforços os maravilhosos “Wall-E”, “Up-Altas Aventuras”, “Divertida Mente” e “Viva-A Vida É Uma Festa” –que quando essa qualidade estratosférica não chega a ser atingida, a impressão que fica é a de decepção, mesmo que até lá seja entregue um trabalho criativo, atrativo e interessante.
Embora traga o primor visual que a cada realização se mostra mais aperfeiçoado e detalhista, e seja em si um entretenimento pleno de diversão, emoção, criatividade e graça, “Dois Irmãos” fica num inédito meio-termo entre os exemplares da Pixar: Está, nos mais diversos quesitos, bem acima de seus títulos mais esquecíveis (como “O Bom Dinossauro”, “Vida de Inseto”, “Carros 1, 2 e 3”, “Universidade de Monstros” e “Procurando Dory”), mas não ombreia a magia de suas diversas obras mais aclamadas (caso de “Procurando Nemo”, “Os Incríveis 1 e 2”, “Monstros S.A.”, “Ratatoille”, “Valente”, todos os “Toy Story” e os mencionados mais acima).
O que não significa, sobremaneira, que não haja muito nele a se apreciar.
Ambientado num mundo de fantasia –como também o era “Monstros S.A.” –“Dois Irmãos” se passa no que seria a era moderna correspondente das histórias do gênero ‘espada & feitiçaria’: Nele existem unicórnios, feiticeiros, dragões, centauros, elfos e toda sorte de criaturas místicas.
Entretanto, a magia ao que parece anda meio fora de moda, substituída pelo recurso mais conveniente da eletricidade (!); elfos e outras criaturas vivem assim numa sociedade onde usufruem de internet, aparelhos celulares e as mais diversas opções tecnológicas, tal e qual os seres humanos da atual vida real.
O protagonista Ian Lighfoot (voz de Tom Holland) é um elfo nascido nessas circunstâncias e, a exemplo de muitos jovens que cresceram rodeados das comodidades da modernidade, ele é inseguro, fato ressaltado por uma certa ausência do pai, que faleceu quando ainda era pequeno.
Dessa forma, sua família se resume ao irmão mais velho Barley (voz de Chris Pratt), um garotão imaturo cuja cabeça avoada está sempre nos jogos de magia e RPG, à sua carinhosa mãe (voz de Julia Louis-Dreyfuss) e, vá lá, seu padrasto, o centauro (!) Colt Bronco (voz de Mel Rodriguez).
No dia de seu aniversário de dezesseis anos, Ian recebe um presente de sua mãe: Uma instrução de seu pai para que pudessem, mesmo após sua morte, passar ao menos um dia inteiro com ele (!); trata-se de um cajado antigo, usado para magia.
Se na mão do irmão Barley, o cajado não surte efeito, na de Ian –que revela uma inesperada aptidão para magia herdada do pai –ele termina por produzir o feitiço que traz de volta o pai. Ao menos, em parte: Somente da cintura para baixo (!).
A ‘pedra-fênix’ usada para tal feitiço não havia sido o suficiente; para ter seu pai por inteiro, matar a saudade e (no caso de Ian) finalmente ter a carência de sua presença preenchida, os irmãos precisam obter uma outra ‘pedra-fênix’ em menos de 24 horas –pois o feitiço prevê apenas esse período para que possam ficar com ele.
Assim, Ian e Barley empreendem uma jornada –cujos avanços correspondem, em parte, aos jogos de tabuleiro e de aventura que parecem querer, muito ao seu jeito, homenagear –que é também uma aventura de descoberta (na qual os irmãos, tão diferentes entre si, perceberão o quanto são essenciais um para o outro) e de auto-afirmação (Ian adquire a coragem, a auto-confiança e a iniciativa que antes lhe faltavam).
É uma obra de apelo profundamente emocional, transcorrida no contexto de um ambiente mágico e fantástico, propício à imagens acachapantes, como só a Pixar sabe fazer; se o sabor que fica na boca ao final é de um prato que já foi melhor servido em outras ocasiões, isso muito se deve ao fato de grande parte de sua equipe técnica ter sido confiada a artesãos mais jovens das fileiras da Pixar, e não aos seus experientes gênios de praxe: O diretor é Dan Scanlon (que estreara na Pixar com “Universidade de Monstros”); a trilha sonora (incapaz de atingir os acordes comoventes de Michael Giachinno) é dos irmãos Mychael e Jeff Danna; o único nome mais gabaritado a surgir na linha de frente em meio aos realizadores desta animação é mesmo Pete Docter (diretor de “Up”), como produtor executivo.
No entanto, mesmo capitaneado por profissionais não tão habilidosos, mais vale um longa da Pixar na mão (ou na tela do cinema ou da TV), do que duas animações convencionais à disposição.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

O Caldeirão Mágico

Ao mesmo tempo em que é muito pouco conhecido, “O Caldeirão Mágico” é também um dos mais incomuns e pouco usuais trabalhos em animação dos Estúdios Disney, adjetivos que levaram a um fracasso de bilheteria que quase comprometeu a existência da empresa.
Realizado em parceria com a produtora Silver Screems –o que talvez explique suas características atípicas em relação às outras animações –“O Caldeirão Mágico” é baseado nas “Crônicas de Prydain”, de Lloyd Alexander, e narra uma trama de fantasia ambientada num mundo medieval, fazendo lembrar simultaneamente a animação em série “Caverna do Dragão”, a animação em longa-metragem “Fogo & Gelo”, e a tentativa (também em animação) de transpor para as telas “O Senhor dos Anéis” –esses dois últimos títulos, por sinal, ambos executados pelo mesmo Ralph Bakshi –todos lançados, mais ou menos, pelo mesmo período: Meados da década de 1980.
Há também –como notaremos mais à frente –diversas influências de outros trabalhos comerciais da época; transfigurando este desenho animado em algo difícil de definir; indeciso no resultado final que se revela ao público.
No reino imaginário de Prydain, corre uma lenda sobre um certo ‘caldeirão negro’ –e não ‘magico’ como menciona o título –no qual o fantasma de um rei cruel foi aprisionado junto com todos os seus poderes. Quem obter o caldeirão, obtém então grande poder.
Após a introdução dessa já sinistra história no prólogo, somos apresentados ao herói do filme, o jovem Taran que, na casa de camponês que vive não é mais que um tratador de porcos, embora sonhe e sagrar-se um corajoso cavaleiro –protagonista que tem em si todos os cacoetes nada disfarçados de Luke Skywalker, cujo “Star Wars” pegou o mundo de assalto alguns anos antes.
O ingresso de Taran na aventura que ocupa todo o filme vem a ser inusitadamente a porquinha Wem-Wem que tem poderes de vidente (?!) sendo, portanto, a única criatura no reino capaz de revelar o jazigo misterioso do caldeirão negro. Para que o perverso Rei de Chifres não a encontre, Taran é instruído a partir com Wem-Wem para longe.
Embora tenha suas piadinhas e seus personagens fofinhos, tal qual uma animação Disney, “O Caldeirão Mágico” contrapõe esses elementos com adições imprevistas, como o Rei de Chifres, um antagonista ameaçador, sinistro e sombrio como nenhum outro já engendrado pela Disney –não há qualquer traço humano nele, sejam reações que esbocem alguma emoção, ou algum background narrativo que explique quem é ou de onde vem; é um vilão visualmente amedrontador que mais parece saído de algum filme de terror.
Na trajetória de Taran, outros personagens cruzarão seu caminho: Gurgi, uma espécie de cachorro humanóide (ou coisa assim...), a jovem princesa Elony e o assustado menestrel Flores Flama, além de pequenos seres que lembram fadas e que fazem lembrar também alguns personagens do filme “A Lenda” –parece haver um constante reaproveitamento temático de muitas influências surgidas nos anos 1980 por esta animação.
Curioso é que tudo isso incrementa uma obra esmagada por um clima soturno e sombrio, cujos pífios esforços para ostentar algum humor e abrandar seu clima são rapidamente sobrepujados por elementos fatalistas, sequências violentas (inclusive, psicologicamente violentas) e visões macabras de esqueletos, hordas de mortos-vivos e névoas bruxuleantes.
É preciso lembrar que os Estúdios Disney, naquela época, 1985, não haviam realizado ainda “A Pequena Sereia”, nem “A Bela e A Fera”, nem “O Rei Leão”... ou seja, em termos de referência, os títulos que eram relacionados à Disney por público e crítica, e nos quais era reconhecida sua qualidade, datavam de anos atrás; décadas até!
Os Estúdios Disney produziram, capitaneados pelo gênio pioneiro do próprio Walt Disney nos anos 1930, 40 e 50, algumas das mais louvadas obras em animação de todos os tempos, contudo, nas décadas seguintes, essa excelência minguou até quase se dissolver –os razoáveis, porém nada impecáveis “101 Dálmatas”, “Mogli” e “Aristogatas” são dos poucos lembrados na década de 1960; já nos anos 1970, restava a lembrança de “Bernardo & Bianca” e olhe lá... –com a chegada dos anos 1980, tudo o que os animadores de então tinham era um legado de antigas realizações que pesava nos ombros de seus artesões mais como uma espécie de fardo e menos como uma inspiração.
Com efeito, isso tudo se registra na trama estranhamente sombria de “O Caldeirão Mágico”: Há um primor artesanal de ponta a ponta na execução visual da animação, não restam dúvidas, e seu jogo de cores sempre deslumbra e encanta, mas, no que tange à trama, “O Caldeirão Mágico” se revela incoerente, enfadonho a partir de certo ponto, ressentido de muitas soluções às quais sua própria história o levou a chegar, e inconstante para com a fórmula que a própria Disney estipulou para o gênero: Não existem quaisquer cenas musicais, e se há algum romance entre o mocinho e a princesa, isso quando muito sequer interfere na trama principal.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Aristogatas

Com suas animações de sucesso consolidadas, a Disney logo criou uma espécie de fórmula com a qual acostumou seu público: Animação de primeiríssima qualidade técnica; história edificante de valores familiares em geral, norte-americanos em particular; personagens fofos, nada realistas, frequentemente animais humanizados.
Embora não evitasse seus altos e baixos, essa fórmula se manteve sólida até o estúdio se ver diante da necessidade de reinvenção na transição dos anos 1980 para os 90.
Antes disso, no entanto, a primeira geração de animadores da Disney –aquela que trabalhou diretamente com Walt Disney em pessoa e entregou alguns de seus clássicos absolutos –lapidou tal fórmula até a perfeição.
Lançado em 1971, “Aristogatas” certamente não consta entre as obras mais consagradas do estúdio –e só não desapareceu na memória do público porque a Disney tem por tradição relançar seguidamente suas animações em novas mídias –mas, passa longe da mediocridade que afetou os seus trabalhos mais problemáticos, que inclusive datam daquele período dos anos 1970.
Reúne, por sinal, uma série de características experimentadas em animações anteriores, e com resultados mais marcantes junto ao público e à crítica: Agrega, por exemplo, elementos de “A Dama e O Vagabundo” (de 1955), onde forma-se –com imenso zelo e sutileza ante a ingenuidade do público infantil –um casal de ‘classes sociais distintas’, um pobretão e uma grã-fina, por assim dizer; e também, ao elaborar uma trama centrada numa família de gatos, revela-se um reflexo da mesma premissa de “A Guerra dos Dálmatas” (de 1961), que coloca uma família de cães numa trama com grandes similaridades.
A gata Duquesa e seus filhotes, Marie, Toulouse e Berlioz, representam o grande xodó de sua dona, uma senhora milionária parisiense.
Mas, eis que o apreço de sua dona desperta sentimentos de inveja: Edgar, o aparvalhado mordomo, não só se ressente por ter de tratar gatos com mais bajulação do que seres humanos, como também conclui que a velha senhora (que não possui outros familiares) não haverá de deixar sua fortuna para ele quando morrer, mas, de alguma forma, tudo ficará para os gatos (!).
Assim, Edgar resolve colocar Duquesa e sua prole (numa noite em que todos dormem graças a um sonífero depositado em seu leite) dentro de um cesto e jogá-lo no rio.
Longe da cidade de Paris e, mais ainda, da mansão de onde quase nunca saem, Duquesa e os filhotes, muito pouco habituados com o áspero mundo exterior precisam encontrar um meio de voltar para casa.
Cruzam-se, lá pelas tantas, com o gato malandro e mundano Thomas O’Malley que, enrabichado da bela gata, resolve ajudá-los a encontrar o caminho de volta ao lar, enfrentando os obstáculos de praxe e encontrando os coadjuvantes já previsíveis de uma animação da Disney –como os gansos Abigail e Amélia, e mais a frente, o ratinho solícito e investigador Roquefort.
Não deixam de haverem nuances na animação com as quais a Disney fornece reflexos do mundo em ebulição de então, como os novos comportamentos sexuais (o romance entre o descolado O’Malley e a melindrosa Duquesa vem atrelado à necessidade dele aceitar os filhotes e a responsabilidade que ela já traz consigo) e uma preocupação em não engessar a narrativa em tradicionalismo (“Aristogatas” é praticamente destituído de números musicais nos quais os personagens saem cantando e dançando as canções outrora tão típicas do estúdio), contudo, essas facetas surgem tão amenas e dispersas que pouco passam percebidas, numa animação que embora encante com sua perfeição técnica oferece pouco, muito pouco, em vista do primor com a qual a própria Disney terminou habituando seus expectadores.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A Bela e A Fera

A iniciativa dos Estúdios Disney de conceber versões em live-action de suas animações sempre esbarrou num problema: O fato de algumas dessas obras serem produções louvadas pelo público e, não raro, criações cinematográficas irretocáveis.
Mal essa tendência havia se tornado lucrativa –com os sucessos de “Alice No País das Maravilhas”, de Tim Burton, “Malévola”, de Robert Stromberg (com Angelina Jolie), “Cinderella”, de Kenneth Branagh, e “Mogli-O Menino Lobo”, de Jon Favreau –e a Disney já resolveu segurar o touro pelos chifres e adaptar uma de suas mais aclamadas obras: O desenho animado que, entre outras honrarias, foi a primeira animação a ser indicada ao Oscar de Melhor Filme, “A Bela e A Fera”.
O escolhido para a empreitada foi o diretor Bill Condon que, diante do dilema criativo entre recriar fielmente a animação (realizando assim um trabalho sem alma) e executar uma obra dotada de sua própria inspiração e inventividade, saiu-se com uma alternativa sábia e travessa: “A Bela e A Fera”, o filme, se ampara, sim, na tão elogiada animação –até porque fãs e apreciadores se ressentiriam se fugisse muito de sua fonte –mas, ele se baseia também, em muitas de suas pontuações narrativas, na bem-sucedida adaptação teatral para os palcos da Broadway.
A dica já se acha no prólogo: Diferente dos vitrais que sugerem o prenúncio da trama na animação, a encenação mostra a festa onde o príncipe em questão (Dan Stevens, magnífica escolha) rejeita o pedido de ajuda de uma mendiga para descobrir que ela era uma feiticeira.
Indignada com o desprezo dele por sua aparência, ela o amaldiçoa: Transforma-o em monstro e todos os súditos de seu castelo nos móveis que o decoram. Para quebrar tal maldição, somente se ele conseguir fazer com que alguém apaixone-se por ele, a despeito de sua forma bestial.
Entra em cena, então, a mocinha Bela (Emma Watson, que deve ter aceitado este papel musical pelo arrependimento de ter recusado a proposta para estrelar “La La Land-Cantando Estações”).
Moradora de uma aldeia francesa, Bela é recebida com estranhamento pelos demais moradores, incomodados por sua independência, sua articulação e inteligência. Contudo, sua grande beleza (ainda que Emma não seja tão bela assim quanto o papel pede), não passa despercebida de Gaston (Luke Evans), o mais bonito e disputado (e arrogante!) rapagão local, que a quer como esposa de qualquer jeito.
Bela vem a se encontrar com Fera quando o pai dela, Maurice (Kevin Kline), perde-se numa viagem, indo parar inadvertidamente no castelo da Fera; e acaba seu prisioneiro.
Mais tarde, ao descobrir as atribulações do pai, Bela propõe uma troca e, agora, será ela quem Fera terá como prisioneira.
Entretanto, os demais personagens que orbitam esse par improvável (como são improváveis todos os pares de desenlaces românticos da ficção) haverão de contribuir para tornar este um romance, entre eles, o candelabro Lumiére (voz de Ewan McGregor), o relógio Cogsworth (voz de Ian McKellen, com quem o diretor Condon fez o premiado “Deuses e Monstros”), o bule de chá Madame Samovar (voz de Emma Thompson) e vários outros.
Ignorando a restrição que a obrigatória proximidade visual e narrativa para com a animação lhe impõe, o diretor Condon aproveita as ferramentas técnicas à sua disposição para transformar “A Bela e A Fera” num espetáculo de cores à exemplo do que foi a própria animação em sua época. Os recursos digitais, empregados de forma imodesta, podem fascinar alguns expectadores por sua extravagância e seu espalhafato, e incomodar outros por sua demasia e gratuidade –e o roteiro de Stephen Chobski (diretor de “As Vantagens de Ser Invisível”, também com Emma Watson, e de “Extraordinário”) não tem maiores justificativas para seu uso, embora possua o ligeiro mérito de tentar se afastar das obviedades em relação à animação ao usar de artifícios mais ou menos perceptíveis como alternância de cenas, a transferência de determinados diálogos para outros personagens e o acréscimo de prolongamentos de cena (que ora funciona, ora fica lamentável).
Como é o caso na maioria dos live-actions da Disney, o melhor meio de apreciar as qualidades deste “A Bela e A Fera” é desencanar de uma comparação constante com a animação; algo que só irá desfavorecer e sabotar o próprio filme.