Existe algo de perene e universal no conto
“Alice No País das Maravilhas” que o faz não somente continuar atual e
pertinente na memória de sucessivas gerações de crianças, como também servir de
forte referência para inúmeros outros trabalhos que a ele devem muito de sua
premissa básica, como a animação japonesa “A Viagem de Chihiro”, de Haya
Myazaki (um grande entusiasta da obra de Lewis Carroll) e o clássico
“Labirinto-A Magia do Tempo”.
As influências e adaptações propriamente ditas
remetem à obras de todas as gerações, realizadas desde os primórdios do cinema
e que totalizam mais de cem títulos (!), aqui, uma modesta lista que inclui as
mais emblemáticas delas:
Alice
No País das Maravilhas (1932)
A terceira adaptação cinematográfica do conto
(sendo a segunda em versão falada) foi executada pela Paramount Pictures, uma
produção de grande orçamento à época tirou proveito da comemoração do
centenário de Lewis Carroll, celebrado naquele mesmo ano.
Dirigido por Norman McLeod, é um trabalho que
envelheceu muito mal (embora hajam relatos de que mesmo naquela época tenha
sido mal recebido), e suas escolhas estéticas (os figurinos portentosos e a
maquiagem cartunesca escondem os célebres rostos do elenco que contam com
grandes astros do período como Gary Cooper e Cary Grant) aliadas ao ritmo lento
prejudicam muito a apreciação do material que, de fato, dispõe de grandes
valores de produção. A direção parece contentar-se com um registro numa
linguagem de teatro filmado que engessa a encenação e remove qualquer elemento
na história que pudesse cativar o público –haveriam ainda muitos anos de
experiência para o cinema comercial dos estúdios assimilar uma capacidade
técnica e artística aprazível para conquistar as platéias.
Alice
No País das Maravilhas (1949)
Houve também, pouco antes da versão da Disney
–para muitos a versão definitiva –um filme francês que aproveitou o conto
clássico e dele concebeu uma obra musical (característica compartilhada por
muitas adaptações que vieram depois), talvez, como forma de ilustrar
cenicamente os lapsos de insanidade propostos no livro e atribuídos a seus
personagens.
A direção de Dallas Bower confere uma relativa
solenidade teatral à encenação das peripécias de Alice (a bela Carol Marsh),
numa engessada postura estética que seria virada de pernas para o ar dois anos
depois, quando fosse lançada a animação da Disney.
Alice
No País das Maravilhas (1951)
Embora mal-sucedido, é inegável que muitos
elementos visuais e referenciais do filme de Norman McLeod foram utilizados por
Walt Disney neste seu longa-metragem animado, a mais famosa provavelmente
dentre todas as adaptações já feitas da obra de Carroll.
Criança educada nos modorrentos ambientes de
uma Inglaterra vitoriana, a pequena Alice, durante um bucólico passeio no
parque, resolve seguir um coelho branco, de comportamento intrigante. A
criatura, sempre atrasada para alguma coisa, a conduz por um mundo esquisito e
diferente, onde ela cruza-se com um chapeleiro maluco, a tomar chá de forma anárquica
junto de uma lebre igualmente aloprada; uma lagarta bonachona e fumante que
parece se mover e se expressar em slow motion; uma psicótica rainha de copas,
obcecada em tirar a cabeça daqueles que lhe desagradam; e muitos outros.
E é aqui, onde surge uma das cenas mais
terrivelmente inesquecíveis da minha memória afetiva cinéfila particular: É
impossível não ficar chocado com os desdobramentos traumáticos da seqüência
conhecida por “A Morsa e O Carpinteiro”, inclusive por que, em se tratando de
uma obra de Walt Disney, não é esperado que a animação faça jus ao fatalismo
inesperado desse segmento. E ele o faz –esse é, para mim, um dos momentos mais
verdadeiramente horripilantes desse desenho!
Muitos vêem nesse filme uma analogia aos
delírios lisérgicos de alucinógenos dos anos 1960 de então, não obstante a essa
proposital ou não referência à contracultura (e ela faz um enorme sentido!), os
Estúdios Disney realmente entregam aqui seu mais psicodélico trabalho.
Alice
In Wonderland (1966)
Uma obra britânica (como também o era a
primeira adaptação, uma curta-metragem em live-action, ainda na época do cinema
mudo, em 1933), este “Alice...” foi dirigido por Jonathan Miller, contava com
um elenco bastante conhecido (John Gielgud como Mock Turtle, Peter Sellers como
Rei de Copas e por aí vai) e fazia parte de uma série inglesa que explorava
contos clássicos –se for levar em conta todas as produções também televisivas
sobre Alice, esta lista ficaria grande demais, por isso colocarei apenas esta
como uma espécie de “representante” das obras feitas para TV, e porque esta
versão tem uma característica bastante interessante.
Aqui, a Alice, interpretada pela jovem
Anne-Marie Mallik, difere das outras em face do ressaltado tom sombrio com o
qual reage aos acontecimentos; tanto que chega quase a oprimir alguns dos
coadjuvantes! É uma Alice mais selvagem, mais difícil, o quê contribui para a
visão pouco ortodoxa do diretor: Em vários momentos, Miller quer transformar
sua obra num filme de terror (auxiliado pela extremamente lúgubre fotografia em
preto e branco), inclusive mantendo a humanidade de muitos personagens –não há
maquiagem ou figurino que transforma o elenco em criaturas surreais, por
exemplo, o quê lhe confere amedrontadora discrição –porém, as ocasionais
inserções de absurdo –inerentes ao conto de Carroll –transformam este trabalho
quase num precursor dos filmes estranhos, enigmáticos e assustadoramente
oníricos de David Lynch.
Alice’s
Adventures In Wonderland (1972)
Outra obra inglesa, desta vez um musical cuja
narrativa parece estabelecer um vínculo artístico entre este filme e o clássico
de 1939, “O Mágico de Oz”, são muitas as similaridades, sobretudo na tentativa
de atribuir pequenas narrativas e motivações aos personagens coadjuvantes que
orbitam Alice, no prólogo que estabelece uma situação mais distinta (e que
vale-se de um ator vivendo o próprio Lewis Carroll), num aproveitamento algo
irregular do segundo livro (“Alice Através do Espelho”) e ,sobretudo, na
inserção de seqüências cantaroladas pelos intérpretes –embora esse recurso
apareça, aqui, com certa timidez.
Este filme ganhou o prêmio BAFTA de Melhor
Figurino e Melhor Direção de Fotografia.
Curiosidade: Peter Sellers, que no filme de
1966 fez o Rei de Copas, neste daqui interpreta a Lebre de Março!
Alice
No País das Maravilhas Eróticas (1976)
Uma hora teria de acontecer: Eis que uma versão
pornográfica (e musical!) foi realizada do conto de Lewis Carroll –é claro que,
sendo assim, não há como avaliar este filme da mesma forma que é feito com obras
convencionais de cinema.
Há nele uma atmosfera de libertinagem e
psicodelismo muito típica da década de 1970 –fazendo-o remeter em muitos
momentos o clássico “Garganta Profunda” –no papel de Alice, a atriz Kristine
DeBell se mostra desinibida em cenas que reinterpretam as segundas intenções
presentes na obra –são inúmeras, por exemplo, as cenas de lesbianismo deste
filme. Vale lembrar que Lewis Carroll, e seu conto clássico, sempre foram
vistos por um prisma reprovador: Ele alimentou por muito tempo um desejo
ardente pela menina chamada Alice (menor de idade, diga-se) que veio a desposar
e teria o inspirado a criar a personagem e suas histórias, fato que atribui uma
natureza de pedofilia na forma com que muitos vêem o livro.
Todavia, as atrizes deste filme (e
protagonistas de muitas cenas de nudez e sexo explícito), são todas
perfeitamente maiores de idade.
É claro que houveram muitas outras versões
eróticas de “Alice...” –incluindo uma estrelada por Sasha Grey –mas, vamos nos
ater somente à esta...
Alice
Ou A Última Fuga (1977)
Vem da França uma das mais interessantes e
diversificadas versões do clássico.
O diretor Claude Chabrol deposita aqui muitas
de suas inquietações existenciais de nível íntimo (muito parecido com o que
certamente Lewis Carroll um dia fez com seu livro), ao transpor a trama para um
contexto de tal forma radical que muitos não enxergam nele uma adaptação –nem
tampouco uma relação com o material.
Mas, atentemos aos pequenos detalhes: A
curvilínea e excitante Sylvia Kristel (em alta com o sucesso de “Emmanuelle”,
mas justamente por isso tentando projetos insólitos como este a fim de escapar
da enorme sombra daquele personagem) interpreta uma personagem chamada Alice
Carroll (!).
Quando o filme se inicia ela abandona o marido
(seria ele o próprio Lewis Carroll, e essa protagonista, na visão
idiossincrática de Chabrol, a Alice original que inspirou o conto, a atuar numa
versão alternativa?), e abandona também a vida matrimonial burguesa que tinha
fugindo de carro por uma estrada afora. Isso a leva até um estranho hotel a
beira de estrada onde ela se vê obriga a pernoitar quando seu carro enguiça –na
verdade, apenas estraga o limpador de pára-brisa.
Os personagens e situações surreais, com os
quais ela irá se cruzar, agregam uma relação ocasionalmente sutil com o livro
de Lewis Carroll, embora o estranhamento da premissa e, em especial, do clima
suscitado (que lembra uma síntese irregular entre Buñuel e Hitchcock) tenha
diretamente a ver com “Alice No País das Maravilhas”.
Ah, sim: Os fãs não precisam ficar
decepcionados, o filme tem, de fato, uma belíssima cena de nudez de Sylvia
Kristel!
O
Estranho Mundo de Alice (1982)
A década de 1980 foi prolífica em trabalhos que
buscaram capturar a característica ímpar de dramaticidade macabra da obra de Lewis
Carroll. Lá surgiram obras como este inusitado musical, quase um média-metragem
(apenas oitenta e dois minutos de duração), que já era raro na época das fitas
de VHS.
Nele, Alice é uma jovem que desmaia num parque
ao ver um homem prestes a ser baleado. Ao despertar, ela é acudida pelo mesmo
homem. À medida que o filme avança, ele revela-se uma figura estranha que, ao
longo dos dias cruza-se com ela de forma aparentemente casual, não deixando,
contudo, de assediá-la.
Falho em relação à sua coreografia (e a outros
quesitos no que tange ao gênero musical) esta modernização do conto, transposta
para um ambiente urbano, possui elementos ora curiosos e originais (Susannah
York como a Rainha de Copas e Jean-Pierre Cassel como o Coelho Branco), ora
tolos e equivocados (um tom entre o sombrio e o fatalista, e a descontração do
musical que nunca se harmoniza de fato).
Alice
(1988)
Uma realização tcheca, dirigida por Jan
Svankmajer, esta é uma das obras mais desiguais à abordar o conto de Carroll
–especializado em animação, Svankmajer cerca sua protagonista, a pequena
Kristyna Kohoutová, por efeitos práticos animados em stop-motion, que dão uma
atmosfera de surreal estranhamento e opressão, extremamente apropriada à
natureza distorcida que o trabalho de Carroll sempre demonstrou em relação aos
outros contos de fadas clássicos. Para tornar a experiência ainda mais
intrigante e desconcertante, o diretor Svankmajer quebra a linguagem narrativa
(difícil dizer se é deliberado ou se é fruto de uma certa inexperiência) com
inserções inusitadas e inesperadas que desestabilizam o sossego do expectador.
Inevitavelmente, um cult-movie com todas as letras!
Alice
No País das Maravilhas (1999)
A década de 1990 se encerrou dando sua própria
contribuição ao roll de adaptações de Lewis Carroll com esta obra de Nick
Willing que tem lá seus méritos: Ele quebra algumas das convenções que surgiram
referentes à adaptações a partir da animação da Disney, como por exemplo, a
Alice predominantemente loira –a intérprete aqui é a menina de cabelos escuros,
Tina Majorino, uma das estrelas-mirins do período, mas que marcou presença em
produções problemáticas como “Waterworld-O Segredo das Águas”.
O elenco, por sinal, é um espetáculo à parte:
Whoopi Goldberg como o Gato Sorrdente, Ben Kingsley como a Lagarta, Gene Wilder
como Mock Turtle, Christopher Loyd como o Cavaleiro Branco, Martin Short como o
Chapeleiro Maluco, Miranda Richardson como a Rainha de Copas, Peter Ustinov
como a Morsa e Peter Postlethwaite como o carpinteiro (!).
A seu favor, este filme tem um ritmo dinâmico
imposto pela direção e uma considerável fidelidade ao livro que o distingue
entre as adaptações, contra ele o fato de ser disperso e exceder as duas horas
de duração.
Alice
No País das Maravilhas (2010)
Se o “Alice...” de Walt Disney é considerada a
versão mais famosa do conto, para os expectadores jovens, isso não chega a ser
verdade: A maioria deles reconhece com muito mais facilidade esta nova versão,
dirigida por Tim Burton, com seu astro-fetiche, Johnny Depp (no papel de um
esquizofrênico Chapeleiro Maluco), que pegou carona na onda de filmes em 3D,
inaugurada por “Avatar” no ano anterior, e cuja boa bilheteria praticamente deu
o estopim às versões live-action dos clássicos animados da Disney, o quê levou
à realização de “Malévola”, “Cinderella”, “Mogli-O Menino Lobo” e outros.
Ao contrário dessas produções que o sucederam
este filme é, de uma certa forma, uma espécie de continuação do clássico
animado Disney, onde Burton abandona a animação para conceber uma encenação
real povoada por efeitos visuais de última geração –e francamente capazes de
encher os olhos! Seu pecado, contudo, é (para o espanto de quem esperava um
filme de Tim Burton nos moldes de seus trabalhos sombrios da primeira fase de
sua carreira) a suavização dos elementos sombrios que conferiam personalidade
ao conto, e a conseqüente distorção de muitos conceitos embutidos nos
personagens (que foram muito mais respeitados por obras anteriores que não
tinham o mesmo requinte desta daqui), o quê aproxima este novo “Alice...” do
convencionalismo de outros contos de fadas já adaptados para o cinema.
Dessa forma, encontramos Alice crescida
(interpretada com alguma ênfase por Mia Wasikowska), quase uma mulher, quando
está prestes a responder a um pedido de casamento de um pretendente desajeitado
que mal conhece. Durante a constrangedora cerimônia em que seria anunciado o
seu noivado, a moça persegue, intrigada, um coelho branco pelo jardim, e acaba
por atravessar um portal que a leva ao inusitado País das Maravilhas, povoado
por criaturas nunca menos que estranhas como o Chapeleiro Maluco, o Gato
Sorridente, e outros. Todos seres que ela julgava ter visto em sonhos que a
assombravam desde pequena, quando na verdade, ela já havia estado lá a muito
tempo atrás. A chegada de Alice é recebida como um sinal de que a insurreição
desses personagens contra a tirânica Rainha Vermelha (obcecada em arrancar a
cabeça de todos os seus desafetos) pode estar próxima do fim.
Na frustrante
reinterpretação de Burton (muito mais desanimadora do que de fato parece), a
loucura atribuída aos personagens desmiolados de Carroll nada mais é do que um
ímpeto revolucionário contra o sistema vigente –e o diretor coroa sua
descaracterização dos conceitos de Lewis Carroll encerrando seu filme com uma batalha
campal no pior estilo “Crônicas de Nárnia”.
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