É sempre lamentável num filme quando seus acertos ficam à sombra de seus equívocos; a versão live-action dos Estúdios Disney para “Mulan” tem um pouco de ambos, mas são os segundos que infelizmente prevalecem em seu cômputo geral.
Lançada em 1998, a animação “Mulan” sempre foi
cercada de desdobramentos complicados –como elementos indiretos de travestimo,
de homossexualismo, de crise de identidade sexual e da emancipação feminina
–tratados com desenvoltura e descontração o suficientes para minimizar quaisquer
polêmicas que a inspiração nessa antiga lenda chinesa (a de uma jovem mulher
que disfarçava-se de homem para lutar no campo de batalha) poderia suscitar.
Ao chegar a vez de “Mulan” naquela ainda
questionável iniciativa Disney de converter seus clássicos animados em filmes
de atores com carne e osso, a diretora Niki Caro (de “O Zoológico de Varsóvia”)
optou por realizar aquela que é, até aqui, a mais radical e distinta
reformulação feita pela Disney: Nos casos de “Mogli”, “A Bela e A Fera”, “O Rei
Leão”, “Alladin” e outros, a transposição narrativa do que era a animação para
o que tornou-se filme atendia a uma fidelidade ocasionalmente irritante –embora
alguns deles tenham se beneficiado de espertos realizadores para se fazer
brilhar por conta própria.
Em “Mulan”, a preservação de aspectos que
refletissem a animação parece menos importar e, se em princípio, esta é uma boa
notícia –afinal, o que vemos é um novo filme e não uma repaginação apagada do
que o desenho animado havia feito muito bem antes –o resultado é que a diretora
Niki Caro nem sempre faz algo memorável com o que lhe sobrou.
A primeira decisão é que o novo “Mulan” não tem
músicas; não é, portanto, um musical. E como todos sabem, as músicas eram um
elemento indissociável no avanço daquela narrativa, inclusive com segmentos
hoje antológicos como “Honrar A Todas Nós”, “Imagem” e “Homem Ser”. No lugar
disso, a trilha sonora intermitente de Harry Gregson-Williams reproduz com
sutileza pouco notável os acordes das famosas canções.
Na esteira dessa primeira decisão veem diversas
outras que destoam muito da integridade do projeto e do que “Mulan”, em si,
vinha a significar: Sai fora a cena icônica em que ela, ao substituir o lugar
do pai idoso no acampamento militar, corta os próprios cabelos, sob pretexto de
que soldados na China antiga não fariam isso –um mero detalhe histórico indiferente
num filme todo definido por fantasia...
Também o núcleo de vilões sofre suas
modificações: Chan Yu, um dos mais assustadores e sensacionais vilões a
comparecer numa animação da Disney –pasmem –não é reutilizado aqui, sendo
substituído pelo líder de invasores Bori Khan, interpretado por Jason Scott Lee
(de “Rapa Nui-Uma Aventura No Paraíso”) que até faz um trabalho muito bom. Ao
seu lado agora há uma feiticeira renegada (Gong Li, a estrela maior da China)
cujas inserções mágicas na trama pouco lhe acrescentam –sua presença só vai
fazer mais sentido próximo do final, quando filme já não pode mais ser salvo.
Assim, com a invasão da China em curso, o
imperador (um envelhecido Jet Li) decreta que toda família da China forneça um
indivíduo do sexo masculino para o alistamento militar.
Como a família de Mulan (Liu Yifei) consiste de
seu velho pai (o sisudo Tzi Ma, incapaz de repetir os trejeitos tocantes do
personagem na animação), sua mãe (Rosalind Chao, de “O Clube da Felicidade e da Sorte”) e sua irmã mais nova (Xana Tang, em substituição nada compensadora da
personagem divertida da avó), a jovem resolve assumir às escondidas o lugar do
pai na guerra, travestindo-se de rapaz.
A animação valia-se de humor para moldar um
caminho leve, instigante e envolvente da protagonista onde ela começava como um
cadete em treinamento para então, a despeito do disfarce sempre sob a ameaça de
ser descoberto, sagrar-se heroína de guerra –e tão bem orquestrada a animação
era que somente anos depois os fãs identificaram elementos incoerentes como a
afeição do Capitão Shang, o indefectível interesse amoroso da protagonista, que
parecia começar a gostar dela antes mesmo de ficar sabendo que é uma mulher
(?!).
Nos tempos impiedosos de hoje, onde os
internautas são capazes de escrutinar um filme desde o trailer e montam
petições homéricas para cancelar aspectos dos quais mal entendem, a adaptação
de Niki Caro tinha uma pressão imensa a lhe pesar –acima de tudo, porque
“Mulan” é visto como uma obra importante na questão da representatividade.
Resultado: Nada do incerto personagem Shang,
dividido em dois outros personagens mais, digamos, atenuantes: Um, o interesse
‘amoroso’, um soldado (Yoson An), que começa seu amigo e assim continua mesmo
após a inevitável revelação (o romance é praticamente deixado de lado); e o
outro, o capitão do regimento, vivido pelo magnífico Donnie Yen (de “Rogue One”), que assume ares paternais por Mulan.
Também o dragão Mushu, dublado por Eddie Murphy
–e alvo de críticas subsequentes por parte do público chinês –ficou de fora,
trocado pelas pomposas aparições de uma fênix digital que não fazem qualquer
diferença à trama.
A espinha dorsal, na qual Mulan se destaca em
meio ao treinamento militar mesmo sendo uma garota escondida entre homens, e
segue seu caminho para revelar-se crucial na luta contra os vilões –salvando
inclusive o Imperador –é obviamente a mesma, entretanto, os detalhes presentes
na inspirada condução da versão animada foram alterados com tamanha
drasticidade que os valores de produção mal podem ser enaltecidos aqui: Os
figurinos, quando não cumprem o básico, deixam evidentes certa displicência, a
direção de fotografia (a cargo de Mandy Walker) comete um erro particularmente
amador numa cena específica e fundamental em que só precisava alterar o foco da
câmera (é quando Mulan segura a espada do pai pela primeira vez), e as cenas de
batalha (terreno no qual a falta de traquejo da diretora mais se expressa) são
risíveis e redundantes, tanto em sua execução (jamais experimentamos o mesmo
escopo épico passado pelo desenho) quanto pelas soluções dadas a elas pelo
roteiro (a forma como Mulan provoca a avalanche sobre os inimigos aqui é o
cúmulo da inverossimilhança e do non-sense).
Se há um elogio a se tecer pelo filme é que
Niki Caro, no acréscimo de suas opções tão diferenciadas, privilegia o
intimismo, valorizando sobretudo os momentos finais de Mulan em família e
conseguindo instantes genuinamente emotivos –não chega, porém, a ser explicação
nem consolo para o resultado tão aquém de seu potencial que ela obtém, ao
adaptar uma animação vibrante e desigual que poderia ter rendido um épico de
aventura suntuoso, cheio de novas camadas de interpretação.
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