sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Mulan


 É sempre lamentável num filme quando seus acertos ficam à sombra de seus equívocos; a versão live-action dos Estúdios Disney para “Mulan” tem um pouco de ambos, mas são os segundos que infelizmente prevalecem em seu cômputo geral.

Lançada em 1998, a animação “Mulan” sempre foi cercada de desdobramentos complicados –como elementos indiretos de travestimo, de homossexualismo, de crise de identidade sexual e da emancipação feminina –tratados com desenvoltura e descontração o suficientes para minimizar quaisquer polêmicas que a inspiração nessa antiga lenda chinesa (a de uma jovem mulher que disfarçava-se de homem para lutar no campo de batalha) poderia suscitar.

Ao chegar a vez de “Mulan” naquela ainda questionável iniciativa Disney de converter seus clássicos animados em filmes de atores com carne e osso, a diretora Niki Caro (de “O Zoológico de Varsóvia”) optou por realizar aquela que é, até aqui, a mais radical e distinta reformulação feita pela Disney: Nos casos de “Mogli”, “A Bela e A Fera”, “O Rei Leão”, “Alladin” e outros, a transposição narrativa do que era a animação para o que tornou-se filme atendia a uma fidelidade ocasionalmente irritante –embora alguns deles tenham se beneficiado de espertos realizadores para se fazer brilhar por conta própria.

Em “Mulan”, a preservação de aspectos que refletissem a animação parece menos importar e, se em princípio, esta é uma boa notícia –afinal, o que vemos é um novo filme e não uma repaginação apagada do que o desenho animado havia feito muito bem antes –o resultado é que a diretora Niki Caro nem sempre faz algo memorável com o que lhe sobrou.

A primeira decisão é que o novo “Mulan” não tem músicas; não é, portanto, um musical. E como todos sabem, as músicas eram um elemento indissociável no avanço daquela narrativa, inclusive com segmentos hoje antológicos como “Honrar A Todas Nós”, “Imagem” e “Homem Ser”. No lugar disso, a trilha sonora intermitente de Harry Gregson-Williams reproduz com sutileza pouco notável os acordes das famosas canções.

Na esteira dessa primeira decisão veem diversas outras que destoam muito da integridade do projeto e do que “Mulan”, em si, vinha a significar: Sai fora a cena icônica em que ela, ao substituir o lugar do pai idoso no acampamento militar, corta os próprios cabelos, sob pretexto de que soldados na China antiga não fariam isso –um mero detalhe histórico indiferente num filme todo definido por fantasia...

Também o núcleo de vilões sofre suas modificações: Chan Yu, um dos mais assustadores e sensacionais vilões a comparecer numa animação da Disney –pasmem –não é reutilizado aqui, sendo substituído pelo líder de invasores Bori Khan, interpretado por Jason Scott Lee (de “Rapa Nui-Uma Aventura No Paraíso”) que até faz um trabalho muito bom. Ao seu lado agora há uma feiticeira renegada (Gong Li, a estrela maior da China) cujas inserções mágicas na trama pouco lhe acrescentam –sua presença só vai fazer mais sentido próximo do final, quando filme já não pode mais ser salvo.

Assim, com a invasão da China em curso, o imperador (um envelhecido Jet Li) decreta que toda família da China forneça um indivíduo do sexo masculino para o alistamento militar.

Como a família de Mulan (Liu Yifei) consiste de seu velho pai (o sisudo Tzi Ma, incapaz de repetir os trejeitos tocantes do personagem na animação), sua mãe (Rosalind Chao, de “O Clube da Felicidade e da Sorte”) e sua irmã mais nova (Xana Tang, em substituição nada compensadora da personagem divertida da avó), a jovem resolve assumir às escondidas o lugar do pai na guerra, travestindo-se de rapaz.

A animação valia-se de humor para moldar um caminho leve, instigante e envolvente da protagonista onde ela começava como um cadete em treinamento para então, a despeito do disfarce sempre sob a ameaça de ser descoberto, sagrar-se heroína de guerra –e tão bem orquestrada a animação era que somente anos depois os fãs identificaram elementos incoerentes como a afeição do Capitão Shang, o indefectível interesse amoroso da protagonista, que parecia começar a gostar dela antes mesmo de ficar sabendo que é uma mulher (?!).

Nos tempos impiedosos de hoje, onde os internautas são capazes de escrutinar um filme desde o trailer e montam petições homéricas para cancelar aspectos dos quais mal entendem, a adaptação de Niki Caro tinha uma pressão imensa a lhe pesar –acima de tudo, porque “Mulan” é visto como uma obra importante na questão da representatividade.

Resultado: Nada do incerto personagem Shang, dividido em dois outros personagens mais, digamos, atenuantes: Um, o interesse ‘amoroso’, um soldado (Yoson An), que começa seu amigo e assim continua mesmo após a inevitável revelação (o romance é praticamente deixado de lado); e o outro, o capitão do regimento, vivido pelo magnífico Donnie Yen (de “Rogue One”), que assume ares paternais por Mulan.

Também o dragão Mushu, dublado por Eddie Murphy –e alvo de críticas subsequentes por parte do público chinês –ficou de fora, trocado pelas pomposas aparições de uma fênix digital que não fazem qualquer diferença à trama.

A espinha dorsal, na qual Mulan se destaca em meio ao treinamento militar mesmo sendo uma garota escondida entre homens, e segue seu caminho para revelar-se crucial na luta contra os vilões –salvando inclusive o Imperador –é obviamente a mesma, entretanto, os detalhes presentes na inspirada condução da versão animada foram alterados com tamanha drasticidade que os valores de produção mal podem ser enaltecidos aqui: Os figurinos, quando não cumprem o básico, deixam evidentes certa displicência, a direção de fotografia (a cargo de Mandy Walker) comete um erro particularmente amador numa cena específica e fundamental em que só precisava alterar o foco da câmera (é quando Mulan segura a espada do pai pela primeira vez), e as cenas de batalha (terreno no qual a falta de traquejo da diretora mais se expressa) são risíveis e redundantes, tanto em sua execução (jamais experimentamos o mesmo escopo épico passado pelo desenho) quanto pelas soluções dadas a elas pelo roteiro (a forma como Mulan provoca a avalanche sobre os inimigos aqui é o cúmulo da inverossimilhança e do non-sense).

Se há um elogio a se tecer pelo filme é que Niki Caro, no acréscimo de suas opções tão diferenciadas, privilegia o intimismo, valorizando sobretudo os momentos finais de Mulan em família e conseguindo instantes genuinamente emotivos –não chega, porém, a ser explicação nem consolo para o resultado tão aquém de seu potencial que ela obtém, ao adaptar uma animação vibrante e desigual que poderia ter rendido um épico de aventura suntuoso, cheio de novas camadas de interpretação.

Uma sina que parece amaldiçoar a maioria desses live-actions perpetrados pela Disney.

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