sábado, 19 de agosto de 2017

Uma Cilada Para Roger Rabbit

A idéia de uma fusão entre animação e live-action sempre foi um objetivo dos Estúdios Disney –Quem não lembra das cenas de “A Canção do Sul”, de 1946, ou a seqüência envolvendo os pingüins animados em “Mary Poppins”? –mas, havia todo um empecilho técnico limitando esse intento: A animação destoava da realidade simplesmente porque haviam barreiras evidentes que separavam as duas linguagens; e dizer isso soa antiquado nos dias de hoje, quando a computação gráfica oferece a cada ano novas inovações em forma de longas animados.
Poucas inovações técnicas, contudo, tiveram uma ressonância tão poderosa quanto “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, de 1988, que prometeu (e cumpriu!) uma união sem precedentes de atores reais e personagens animados em cena.
Isso só foi possível graças à junção da Disney com o produtor Steven Spielberg, detentor de vastos recursos no campo dos efeitos visuais, graças a sua amizade de longa data com George Lucas, o dono da Industrial Light & Magic, a empresa responsável pela magia que se testemunha na tela.
Para dirigir essa junção entre desenho e filme (e ciente de que tal junção precisaria ter a especificação de uma narrativa que englobasse o dinamismo natural das animações à encenação real) Spielberg chamou seu apadrinhado, Robert Zemeckis (que tinha dirigido para o próprio Spielberg o sucesso “De Volta Para O Futuro” e teve de adiar em três anos as filmagens das duas continuações para concretizar este projeto).
Zemeckis deu a condução narrativa e a percepção ideal para que os efeitos visuais complexos que colocavam desenhos e atores lado a lado transcorressem com naturalidade em cena. A história, também ela, contribuía para essa experiência sensorial: Numa brilhante sacada de metalinguagem, Hollywood, nos anos 1930, é uma indústria que produz desenhos animados (os chamados cartoons) da mesma forma que produzia filmes; os personagens animados são astros que se comportam longe das câmeras que maneira quase sempre distinta do que são em frente à elas –e esse retrato fantasioso mas não despido de lógica e observação aproveita para lançar mão de pontas luxuosas de verdadeiros astros animados como Pateta, Betty Boop (numa cena em que relata ao protagonista seu problema de desemprego, já que é um desenho em preto & branco, e agora eles só eram feitos à cores), Pato Donald e, numa cena considerada histórica, um encontro entre Mickey Mouse e o Coelho Pernalonga (cedido pela Warner sob a condição de que aparecesse durante o mesmo tempo de cena que o Mickey!).

Um dos grandes astros dos estúdios daquele período é o coelho Roger Rabbit.
Mas, como muitos astros de carne e osso daquele mesmo período, Roger tem um casamento cujas atribulações dão dor de cabeça aos produtores; sua esposa é, também ela, uma animação, no entanto, não há nada do histrionismo e da fanfarronice que sobra em Roger –trata-se da inacreditavelmente sexy Jessica Rabbit.
Sobra para o protagonista do filme, o detetive particular Eddie Valiant (o ótimo Bob Hoskin, se esbaldando com um divertido retrato de um herói de film noir e com a pantomina exigida pela sua interação com as dezenas de personagens animados) fazer assim um trabalhinho sujo: Tirar fotos que flagrem um instante de adultério de Jessica com um provável amante.
Contudo, o tal amante, dono das terras onde fica a tal cidade dos desenhos, Toontown, aparece morto e as circunstâncias tornam Roger Rabbit, que desapareceu, o suspeito número 1. Em sua mentalidade algo non-sense de cartoon, Roger procura pelo próprio Valiant para lhe ajudar: Já que foi ele quem o colocou nessa encrenca!
Na verdade, tudo é uma conspiração cheia de segredos e reviravoltas que podem impressionar quem espera um filme leve (embora ele o seja) com uma trama simplória: “Roger Rabbit” aposta alto na inteligência do público, mesmo aquele que assiste produções censura livre, e oferece muito o que ver à platéia adulta também –são inúmeras as referências ao cinema noir (grande homenageado do filme) e outras tantas aos desenhos da Era de Ouro de Hollywood, aqueles que os pequenos certamente não tinham idade para ter visto.
Tudo, porém, fica redundante diante do assombro que é a interação perfeita e espantosa dos cartoons com os atores reais: Um misto de arrojada animação com computação gráfica (que à época ainda era uma ferramenta bastante experimental) dá às imagens animadas um formato tridimensional que lhes confere textura e saliência, tal e qual os personagens de carne e osso; a partir daí, são incessantes as cenas sensacionais que o diretor Zemeckis entrega uma a uma.
“Roger Rabbit” não foi o primeiro filme a buscar tal efeito –os já mencionados “A Canção do Sul” e “Mary Poppins” são prova disso, além de inúmeras outras tentativas menos expressivas –e certamente não foi o último –a ele seguiu-se, nas décadas seguintes, os irregulares “Space Jam-O Jogo do Século” (que reunia o jogador de basquete Michael Jordan e o Pernalonga), “Looney Tunes-De Volta À Ação”, de Joe Dante, e até mesmo o italiano e malicioso “Volere, Volare”, de Maurizio Nichetti –mas a realização conjunta de Steven Spielberg e dos Estúdios Disney, capitaneada por Robert Zemeckis, entrou para a história do cinema como o mais perfeito exemplo de um efeito visual que hoje pode parecer antiquado, mas continua traduzindo brilhantemente a máxima de “sonho tornado realidade”.

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