quarta-feira, 17 de junho de 2020

Eu, Tonya

Tonya Harding, pivô de um famoso escândalo envolvendo o ataque a uma de suas concorrentes nas disputadas Olimpíadas de Inverno durante os anos 1990, era uma personagem difícil, hostil, anti-social e osso duro de roer –à essas características muito humanas, o diretor Craig Gillespie acrescenta outra: Incompreendida.
Munido do formidável roteiro de Steven Rogers e produzido pela estrela Margot Robbie (que também interpreta Tonya), Gillespie consegue encontrar, num inesperado ponto de vista desta história difundida pela imprensa de então como um conto de fadas disfuncional, um relato aflitivo, ora engraçado, ora entristecedor, sobre os papéis ingratos que a vida, o ambiente nocivo que nos cerca e as redundâncias da mídia podem nos reservar.
Por meio de depoimentos alternados (e engraçadíssimos no esmero de suas caracterizações) somos apresentados aos recortes narrativos habilmente justapostos da vida de Tonya Harding (à quem Margot Robbie empresta brilho genuíno e um encanto incomum que vem dela própria) nascida na cidade de Oregon, em Portland, que, desde muito pequena, sofreu na mão da mãe autoritária, insensível e controladora, LaVona (Allison Janney, fabulosa no papel que lhe deu o Oscar 2018 de Melhor Atriz Coadjuvante).
Embora a filha tivesse uma habilidade realmente singular para a patinação no gelo, LaVona não a incentivava da maneira certa. Em vez disso, LaVona fazia cobranças desmedidas, recriminava a filha, ainda com pouca idade, pelo dinheiro que era obrigada a gastar nos treinamentos, e impunha um controle sobre a vida dela que frequentemente se convertia em abuso.
Essa criação levou Tonya a crescer grosseira, ressentida, rancorosa e beligerante.
Quando Tonya atinge a idade adulta e conhece Jeff Gilloly (Sebastian Stan) que vem a se tornar seu marido, levando-a a sair de casa e das opressões praticadas pela mãe, ela apenas troca um abusador por outro: Instável, iletrado e ignorante, Jeff tinha brigas domésticas homéricas com Tonya (que também não era alguém fácil de lidar) que sempre culminavam em agressão.
A essa vida de infortúnios, sempre com a constante ameaça da pobreza da classe baixa americana, e a discriminação por seu estatuto social proletariado, a patinação no gelo surge como uma promessa de um amanhã melhor para a tão maltratada protagonista (vale lembrar que, embora muitas cenas sejam feitas por dublês, Margot Robbie realmente treinou arduamente para executar muitas das manobras sobre patins que vemos).
Contudo, a biografia minuciosa e bem elaborada que toma conta da primeira parte do filme serve só para contextualizá-la. A parte que interessa ao público –como a própria Tonya, em dado momento, observa sarcasticamente –vem a ser a controversa participação de Tonya nas Olimpíadas de 1994, num episódio que curiosamente ficou no subconsciente do público como se tivesse sido a própria Tonya Harding quem tivesse golpeado e quebrado o joelho da competidora Nancy Kerrigan.
E muitos são os que, estranhamente, lembram do incidente dessa maneira.
Segundo o filme, não foi assim que aconteceu.
Durante as idas e vindas na relação com Jeff, Tonya se dedicava às Olimpíadas de Inverno que tinha disputado dois anos antes, e lutava para se aperfeiçoar e recuperar a forma com a qual tinha sido capaz de executar o dificílimo Salto Axel Triplo (ela foi a única patinadora americana a realizar tal feito) ganhando o Campeonato de Patinação no Gelo do Reino Unido.
Sua meta era obter a tão sonhada medalha olímpica.
Contudo, ameaças de morte acirraram os nervos de Tonya tornando a fragilidade psicológica mais um dos obstáculos que ela teria de enfrentar ainda durante o Campeonato Regional do Noroeste do Pacífico. Jeff, seu marido, numa amostra de burrice profunda, tem a ‘brilhante’ ideia de enviar cartas ameaçando de morte também a competidora de Tonya, Nancy Kerrigan (Caitlin Carver, de “Cidades de Papel”), para, na opinião dele, “igualar o jogo” –nessa empreitada estúpida, ele tem o auxílio e o incentivo do mais estúpido ainda Shawn (Paul Walter Hauser, de “O Caso Richard Jewell” e “Infiltrado Na Klan”), que afirmava atuar como guarda-costas de Tonya, quando na verdade não trabalhava com coisa alguma, enquanto morava com sua mãe e dizia para todo mundo que era perito em Contra-Espionagem e Contra-Terrorismo –é um daqueles personagens tão absurdos e non-sense que só é crível por tratar-se de um ser oriundo da vida real mesmo!
Nesse ponto do filme, por sinal, a quantidade de personagens absurdos e non-sense aumenta quando entram em cena os dois estabanados comparsas que deveriam entregar a carta de ameaça à Nancy, mas, em vez disso, são instruídos por Shawn a invadir sorrateiramente o ginásio de treinamento e quebrar-lhe a perna (!). Ocorrência que põe o FBI atrás de todos.
Para tentar elucidar uma circunstância cheia de meandros confusos –e que, à época confundiu a opinião pública –Gillespie lança mão de uma série de subterfúgios, de depoimentos subjetivos  de revelações e informações, em meio aos quais deixa claro o papel nada inocente, mas definitivamente, longe de ser o principal culpado de Tonya Harding naquilo tudo. Infelizmente, o que ocorreu, no fim das contas, é inversamente oposto: Embora Jeff e Shawn tenham sido sentenciados, Tonya foi afastada em definitivo da patinação artística a única aptidão que possuía e amava (tocante a cena –fictícia –em que ela implora ao juíz, ainda no tribunal, que não lhe tire a única coisa que sabe fazer na vida); no subconsciente do público, sua punição foi ainda mais injusta: Ela passou a ser lembrada, julgada e taxada como a grande vilã de uma história na qual entrou quase de gaiato empurrada pela má fé de outrem, pelas próprias escolhas infelizes e pelo meio tóxico em que foi criada e no qual aprendeu a viver.
É, pois, uma espécie de justiça poética que vem a lhe proporcionar este magnífico filme realizado por Graig Gillespie (uma ficção amparada em fatos reais, é sempre bom lembrar), na atuação espantosa e rica em maneirismos nada óbvios da sensacional Margot Robbie, e na tardia conscientização que provoca no público de que os EUA em particular, e o ser humano em geral, procuram, mesmo nos complicados dramas humanos como este, os estereótipos básicos e simplificados através dos quais possam amar e, sobretudo, odiar, sem maiores entendimentos.

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