A obra pela qual o diretor John Waters e seu protagonista, o travesti Divine, estão fadados a serem sempre reconhecidos, fez parte de um involuntário movimento cultural surgido nos anos 1960 e 70, na esteira de filmes como o pornô “Garganta Profunda” e de realizações que ganharam certa repercussão a partir das inusitadas exibições da meia-noite: Obras que desafiavam os padrões e chocavam as sensibilidades vigentes, sinalizando um novo tipo de cinema a ser realizado e absorvido por uma sociedade que assimilava mudanças de um contraste então sem precedentes na história.
Chocar assim parecia ser a forma mais prática e
imediata com a qual Waters e sua equipe conseguiram chamar a atenção em nichos
muito restritos com o já ofensivo “Multiple Maniacs”, entretanto, eles
almejavam mais: Na continuidade do que pareciam ser experiências urgidas a
partir de consumo coletivo de substâncias ilícitas –e da inspiração
inconsequente obtida através de seus efeitos –Waters realizou um filme centrado
na figura auto-intitulada “a mais ultrajante de todo o planeta”, a intratável
Babs Johnson, interpretada com petulância irreprimível por Divine. Ela não se
encontra só em sua improvável fonte de orgulho: Também correspondem a essa
infame descrição cada um dos membros de sua disfuncional família; seu filho
que, de tanto fumar maconha, adquiriu um estado de letargia debilóide
permanente (Danny Mills) e sua mãe cuja obesidade mórbida, às custas de ovos
que come sem parar, lhe condenou a viver tão somente num berço (Edith Massey,
um figura assombrosa!).
No entanto, surgem também os Marble (vividos
por David Lochary e Mink Stole, também eles, presenças habituais nas obras de
Waters), um casal que, na intenção de reclamar o título de pessoas mais
ultrajantes do planeta para si, vivem de raptar, estuprar e engravidar moças
que pedem carona à beira das estradas (!). Uma vez que nascem as crianças
frutos de tal prática nauseante, os Marble vendem-as para casais de lésbicas,
usando o dinheiro para financiar seu tráfico improvisado de heroína nos portões
das escolas (!!).
Despudorada, vulgar e disposta a afrontar cada
sensibilidade do mais casca-grossa dos expectadores, a narrativa de “Pink
Flamingos” une o tom transgressivo e trash
a uma crueza deliberada –na verdade, uma é a invariável consequência da outra:
As atrozes limitações orçamentárias da produção (reza a lenda que John Waters
era obrigado a filmar somente nos fins de semana, já que passava os dias úteis
fazendo algo para levar verba para realização do projeto!) obrigaram o filme a
adotar os recursos estilísticos que o definem, como a fotografia granulada e
inconstante em seu foco, cortes repentinos e sem elaboração (consta que, para
Waters, não existia diferença entre a cópia bruta do material e sua edição
final...) e seu estranho e periclitante desenho de som. Isso faz de “Pink
Flamingos” algo que pode ser considerado assim um manual da estética cinematográfica
da podridão (!).
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