domingo, 3 de julho de 2022

Pink Flamingos


 A obra pela qual o diretor John Waters e seu protagonista, o travesti Divine, estão fadados a serem sempre reconhecidos, fez parte de um involuntário movimento cultural surgido nos anos 1960 e 70, na esteira de filmes como o pornô “Garganta Profunda” e de realizações que ganharam certa repercussão a partir das inusitadas exibições da meia-noite: Obras que desafiavam os padrões e chocavam as sensibilidades vigentes, sinalizando um novo tipo de cinema a ser realizado e absorvido por uma sociedade que assimilava mudanças de um contraste então sem precedentes na história.

Chocar assim parecia ser a forma mais prática e imediata com a qual Waters e sua equipe conseguiram chamar a atenção em nichos muito restritos com o já ofensivo “Multiple Maniacs”, entretanto, eles almejavam mais: Na continuidade do que pareciam ser experiências urgidas a partir de consumo coletivo de substâncias ilícitas –e da inspiração inconsequente obtida através de seus efeitos –Waters realizou um filme centrado na figura auto-intitulada “a mais ultrajante de todo o planeta”, a intratável Babs Johnson, interpretada com petulância irreprimível por Divine. Ela não se encontra só em sua improvável fonte de orgulho: Também correspondem a essa infame descrição cada um dos membros de sua disfuncional família; seu filho que, de tanto fumar maconha, adquiriu um estado de letargia debilóide permanente (Danny Mills) e sua mãe cuja obesidade mórbida, às custas de ovos que come sem parar, lhe condenou a viver tão somente num berço (Edith Massey, um figura assombrosa!).

No entanto, surgem também os Marble (vividos por David Lochary e Mink Stole, também eles, presenças habituais nas obras de Waters), um casal que, na intenção de reclamar o título de pessoas mais ultrajantes do planeta para si, vivem de raptar, estuprar e engravidar moças que pedem carona à beira das estradas (!). Uma vez que nascem as crianças frutos de tal prática nauseante, os Marble vendem-as para casais de lésbicas, usando o dinheiro para financiar seu tráfico improvisado de heroína nos portões das escolas (!!).

Despudorada, vulgar e disposta a afrontar cada sensibilidade do mais casca-grossa dos expectadores, a narrativa de “Pink Flamingos” une o tom transgressivo e trash a uma crueza deliberada –na verdade, uma é a invariável consequência da outra: As atrozes limitações orçamentárias da produção (reza a lenda que John Waters era obrigado a filmar somente nos fins de semana, já que passava os dias úteis fazendo algo para levar verba para realização do projeto!) obrigaram o filme a adotar os recursos estilísticos que o definem, como a fotografia granulada e inconstante em seu foco, cortes repentinos e sem elaboração (consta que, para Waters, não existia diferença entre a cópia bruta do material e sua edição final...) e seu estranho e periclitante desenho de som. Isso faz de “Pink Flamingos” algo que pode ser considerado assim um manual da estética cinematográfica da podridão (!).

Se tal comentário não lhe convence sobre o poder ainda não igualado deste filme em suscitar verdadeira repulsa, certamente a icônica e memorável sequência final lhe fará: Babs Johnson –ou o próprio Divine, como queira –numa rua do centro de Baltimore, junta do chão um punhado de excremento depositado ali por um cachorrinho pouco antes, e num ímpeto injustificável leva tudo à boca e mastiga (!) para logo em seguida ter um acesso de vômito. A imagem que encerra Pink Flamingos” é Divine olhando para a câmera com uma expressão que só pode ser definida como a de alguém que acabou de comer merda.

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