A adaptação da célebre peça musical “Chicago”
para o cinema foi um projeto acalentado por muito tempo pelo diretor Bob Fosse
(e por conta de seu longo envolvimento guarda dele inúmeras similaridades
estilísticas), entretanto, após sua morte, ela acabou transposta pelo jovem
diretor –e coreógrafo assim como Fosse –Rob Marshall com descontração e talento
para a tela grande.
“Chicago” representava, entre outras coisas,
uma tentativa convulsiva do cinema hollywoodiano em resgatar a exuberância dos
grandes musicais de antigamente: Um ano antes, esse reforço tinha se
materializado no efervescente “Moulin Rouge”, com Nicole Kidman. Na comparação
com a história de amor incontornavelmente kistch do diretor Baz Luhrmann,
“Chicago” carrega bem menos em suas tintas cerimoniosas, preferindo conquistar
a platéia com o charme natural do jazz e com uma série de escolhas sensatas em
relação ao próprio gênero que abraça –e levando em consideração a pouca
acessibilidade desse gênero para com o público atual: As cenas musicais que
definem “Chicago” desde sua gênese, no filme, são traduzidas em devaneios
inerentes à personagem principal.
Para todos os efeitos, portanto, “Chicago”
aborda o expectador como um filme ‘normal’ sem exigir dele qualquer capacidade
prévia de degustar um gênero que só era hábito para as antigas gerações.
Não obstante esse detalhe eficiente para com a
narrativa e ao mesmo tempo negligente para com o gênero a que pertence, o filme
é tão bem realizado (contornando com brilhantismo as restrições orçamentárias)
e executado com tanta garra e vontade por seu elenco, que o prazer emanado de
suas cenas fez com que público e crítica deixassem passar despercebido, à
época, o cinismo contundente e corrosivo na visão do mundo, da sociedade e do
sistema legislativo com a qual o filme é feito.
Como o título deixa bem claro, estamos na
cidade de Chicago, nos anos 1920. Em busca de seu lugar no céu da fama, a loira
Roxie Hart (Renee Zelwegger, cheia de energia) mata seu amante à sangue frio
quando descobre suas promessas vazias –e, se a própria protagonista começa a
trama cometendo um assassinato (e sua índole não dá o menor indício de melhorar
ao longo do filme), pode ter certeza que estamos diante de uma obra que encara
a maldade e a vilania, no mínimo, com indiferença.
Roxie vai para a prisão onde disputará os
holofotes com Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones, ganhadora do Oscar de Melhor
Atriz Coadjuvante), uma criminosa famosa, grande exemplo do fascínio que as
fora-da-lei exerciam sobre a mídia (e nisso, o filme de Marshall parece lançar
debochada analogia às questionáveis predileções culturais do nosso próprio
tempo). Auxiliada por um advogado espertalhão (Richard Gere, surpreendente em
sua interpretação de envolvente mau-caráter e absolutamente sensacional em
todos os seus números musicais), e bancada pela displicência de um marido pra
lá de passivo (John C. Reilly, hilário, e emocionante na performance da música
“Mr. Cellophane”), Roxie busca fazer de sua permanência na cadeia a chance de
se consagrar como uma grande estrela, enquanto tenta se livrar da condenação
por homicídio que pode levá-la à forca.
Todas as variações, observações e monólogos contidos
em cada etapa nessa trajetória de Roxie Hart são assim ilustrados por música, e
“Chicago” diz a quê veio quando explode em cenas prodigiosamente bem executadas
como “And All That Jazz”, “Cell Block Tango”, “When You’re Good To Mama”
“Razzle Dazzle”, “I Move On” (esta, composta especialmente para o filme),
“Class” e “Hot Money Rag”.
No mundo cínico cheio de crime, abuso,
mau-caratismo e personagens completamente inescrupulosos concebido por Rob
Marshall a música é, afinal, a única forma de vislumbrar alguma beleza e
encanto nisso.
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