sábado, 13 de agosto de 2016

Veludo Azul

Se o vermelho sinaliza, no cinema de David Lynch, a ilusão, ou a possível presença dela, então o azul, em geral, costuma significar a deturpação moral, a corrupção.
E tudo, nesta obra inigualável de David Lynch é passível de corrupção: Ele é particularmente feliz na criação de uma atmosfera na qual as imaculadas casas com jardim da classe média norte-americada da década de 1980 está a mercê de um mundo mais sombrio que espreita nas sombras. Um mundo que o jovem Jeffrey (Kyle MacLachlan) irá conhecer.
Numa cidadezinha suburbana dos Estados Unidos, ele encontra por acaso uma orelha humana num matagal. Após levar tal achado para a polícia, ele inicia pessoalmente uma gaiata investigação, aliada à ingênua, angelical e curiosa filha do delegado local, Sandy (Laura Dern). As pistas que obtém a partir daí o levam a conhecer Dorothy (Isabella Rossellini), uma cantora de boate vitimizada física e psicologicamente por um perigoso psicopata, Frank (Dennis Hopper, surtado como nunca).
De imediato já se revela fascinante o jogo formidável de dualidades imposto por Lynch: Não só Sandy e Dorothy são contrapartes opostas da figura feminina arquetípica (e até facetas desiguais de uma mesma femme fatale), como os mundos que ambas habitam é de um contraste que ocasionalmente parece ser brutal.
Sandy inspira confiança e segurança, e sua qualidade é ser a namoradinha que Jeffrey gostaria de apresentar aos pais. Dorothy é a mulher madura e sexualmente permissiva que ele quer levar para a cama.
Uma, ironicamente, o empurra para o perigo, a outra o arrasta para dentro dele.
E, se há uma dedução que não se precisa fazer neste filme de Lynch, é a descontrução e reinvenção que ele promove, por conta disso, do que se subentende por fim noir: Até mesmo a concepção do irreal, perdidas nas décadas posteriores ao seu surgimento, quando o gênero começou a ser levado à sério, aparecem aqui, absolutamente apropriadas à um realizador como ele.
As intervenções de suspense deste clássico magnífico dos anos 1980 revelam no diretor David Lynch um hábil explorador de figuras bizarras e de cenas absurdas que por vezes beiram o inexplicável, como a alarmante postura dos dois homens semi-mortos no apartamento da heroína, já perto do final.

O filme é mórbido, perturbador até, mas também fascinante e envolvente, na maneira com que discute as percepções abstratas de trama e expectativa que seu diretor vai quebrando, uma a uma.

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