Se o vermelho sinaliza, no cinema de David
Lynch, a ilusão, ou a possível presença dela, então o azul, em geral, costuma
significar a deturpação moral, a corrupção.
E tudo, nesta obra inigualável de David Lynch é
passível de corrupção: Ele é particularmente feliz na criação de uma atmosfera
na qual as imaculadas casas com jardim da classe média norte-americada da
década de 1980 está a mercê de um mundo mais sombrio que espreita nas sombras.
Um mundo que o jovem Jeffrey (Kyle MacLachlan) irá conhecer.
Numa cidadezinha suburbana dos Estados Unidos,
ele encontra por acaso uma orelha humana num matagal. Após levar tal achado
para a polícia, ele inicia pessoalmente uma gaiata investigação, aliada à
ingênua, angelical e curiosa filha do delegado local, Sandy (Laura Dern). As
pistas que obtém a partir daí o levam a conhecer Dorothy (Isabella Rossellini),
uma cantora de boate vitimizada física e psicologicamente por um perigoso
psicopata, Frank (Dennis Hopper, surtado como nunca).
De imediato já se revela fascinante o jogo
formidável de dualidades imposto por Lynch: Não só Sandy e Dorothy são
contrapartes opostas da figura feminina arquetípica (e até facetas desiguais de
uma mesma femme fatale), como os mundos que ambas habitam é de um contraste que
ocasionalmente parece ser brutal.
Sandy inspira confiança e segurança, e sua
qualidade é ser a namoradinha que Jeffrey gostaria de apresentar aos pais.
Dorothy é a mulher madura e sexualmente permissiva que ele quer levar para a
cama.
Uma, ironicamente, o empurra para o perigo, a
outra o arrasta para dentro dele.
E, se há uma dedução que não se precisa fazer
neste filme de Lynch, é a descontrução e reinvenção que ele promove, por conta
disso, do que se subentende por fim noir: Até mesmo a concepção do irreal,
perdidas nas décadas posteriores ao seu surgimento, quando o gênero começou a
ser levado à sério, aparecem aqui, absolutamente apropriadas à um realizador
como ele.
As intervenções de suspense deste clássico
magnífico dos anos 1980 revelam no diretor David Lynch um hábil explorador de
figuras bizarras e de cenas absurdas que por vezes beiram o inexplicável, como
a alarmante postura dos dois homens semi-mortos no apartamento da heroína, já
perto do final.
O filme é mórbido, perturbador até, mas também
fascinante e envolvente, na maneira com que discute as percepções abstratas de
trama e expectativa que seu diretor vai quebrando, uma a uma.
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