Revisto “Coração Selvagem” conserva inalterado
todo seu fascínio. É notável perceber também que ele pertence a uma fase em que
David Lynch se permitia trabalhar com materiais oriundos de outrem –como “Duna”
extraído do romance de Frank Herbert ou o livro de Barry Gifford, como é o caso
aqui –e mesmo assim se manter dentro de seu estilo rocambolesco, ácido e
desafiador.
Saltam aos olhos as analogias estabelecidas
entre “O Mágico de Oz” –uma pequena obsessão de Lynch vide a personagem de
Isabela Rosellini chamada Dorothy em “Veludo Azul” –possivelmente responsáveis
principais pelo estranhamento deliberado que ele evoca nesta obra.
Como Saylor, Nicolas Cage é incrivelmente
adequado ao universo do diretor: Um ator perfeito para os rompantes bipolares
que a narrativa irá impor ao personagem que começa o filme cometendo um
chocante assassinato, termina encontrando um tortuoso caminho para virar pai de
família, e durante todo o processo enaltece Elvis Presley.
No papel da garota que ele ama –e junto da qual
vive toda uma jornada de fuga e redenção –Laura Dern, uma das atrizes
prediletas de Lynch, compõe uma personagem diametralmente oposta ao seu
trabalho anterior, em “Veludo Azul”: Se antes era a menina recatada, aqui ela é
a garota sensual; facetas opostas numa mesma intérprete que Lynch parece
contrabalancear em cores quentes. Com efeito, se Cage é um reflexo de Elvis
Presley, Dern é um reflexo de Marilyn Monroe.
E ambos, no papel assumido de criações
norteadas pela caricatura, são assim os protagonistas perdidos em um conto de
fadas perverso, corrosivo e sórdido. A estrada pela qual dirigem todo o filme,
a fugir da mãe dela (Diane Ladd) que os deseja separados e Saylor, morto, é,
portanto, a estrada de tijolos amarelos que deveria levar à Cidade Esmeralda, mas
leva à cidadezinha poeirenta de Big Tuna, onde um desfecho de desventura lhes
aguarda.
Dessa forma, o road movie que o casal
apaixonado estrela se ocupa de mostrar, aqui e ali, personagens defeituosos e
problemáticos, aos quais sempre falta algo –tal qual o Espantalho sem cérebro,
o Homem de Lata sem coração e o Leão Covarde sem coragem.
Esses personagens surgem ora nas histórias
mirabolantes que Saylor e Lula contam um ao outro (a ninfomaníaca que se
recusava a fazer sexo oral; ou o primo de Lula, vivido por Crispin Glover,
acometido de insana esquizofrenia); ora cruzando o caminho dos dois (o velhote
de voz esganiçada que reflete sobre pombos, ou a antológica aparição de Willem
Dafoe no papel do cafajeste Bobby Peru) –entretanto, não é dado a nenhum deles
a oportunidade de preencher magicamente suas deficiências, assim como os
próprios protagonistas não estão lutando para voltar ao lar, como Dorothy, mas,
ao contrário, estão tentando fugir dele.
Narrado num tom caricatural que desperta certa
suspeita ao expectador –sobretudo, àquele expectador acostumado aos enigmas
quase indecifráveis de Lynch –“Coração Selvagem” encontra, nas manobras
tortuosas de seu próprio retrato do mal, um final terno e feliz para seus
personagens principais (proporcionado pela intervenção da Bruxa Boa, Glinda,
aqui vivida por Sheryl Lee, a própria Laura Palmer!) quando estes se agarram à
única âncora sólida e real naquele mundo corrupto e pernicioso: O amor que têm
um pelo outro.
E o amor, na verve poética
de Lynch, é o fogo que queima –o elemento, não por acaso, de maior força visual
na narrativa.
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