terça-feira, 12 de março de 2019

Coração Selvagem

Revisto “Coração Selvagem” conserva inalterado todo seu fascínio. É notável perceber também que ele pertence a uma fase em que David Lynch se permitia trabalhar com materiais oriundos de outrem –como “Duna” extraído do romance de Frank Herbert ou o livro de Barry Gifford, como é o caso aqui –e mesmo assim se manter dentro de seu estilo rocambolesco, ácido e desafiador.
Saltam aos olhos as analogias estabelecidas entre “O Mágico de Oz” –uma pequena obsessão de Lynch vide a personagem de Isabela Rosellini chamada Dorothy em “Veludo Azul” –possivelmente responsáveis principais pelo estranhamento deliberado que ele evoca nesta obra.
Como Saylor, Nicolas Cage é incrivelmente adequado ao universo do diretor: Um ator perfeito para os rompantes bipolares que a narrativa irá impor ao personagem que começa o filme cometendo um chocante assassinato, termina encontrando um tortuoso caminho para virar pai de família, e durante todo o processo enaltece Elvis Presley.
No papel da garota que ele ama –e junto da qual vive toda uma jornada de fuga e redenção –Laura Dern, uma das atrizes prediletas de Lynch, compõe uma personagem diametralmente oposta ao seu trabalho anterior, em “Veludo Azul”: Se antes era a menina recatada, aqui ela é a garota sensual; facetas opostas numa mesma intérprete que Lynch parece contrabalancear em cores quentes. Com efeito, se Cage é um reflexo de Elvis Presley, Dern é um reflexo de Marilyn Monroe.
E ambos, no papel assumido de criações norteadas pela caricatura, são assim os protagonistas perdidos em um conto de fadas perverso, corrosivo e sórdido. A estrada pela qual dirigem todo o filme, a fugir da mãe dela (Diane Ladd) que os deseja separados e Saylor, morto, é, portanto, a estrada de tijolos amarelos que deveria levar à Cidade Esmeralda, mas leva à cidadezinha poeirenta de Big Tuna, onde um desfecho de desventura lhes aguarda.
Dessa forma, o road movie que o casal apaixonado estrela se ocupa de mostrar, aqui e ali, personagens defeituosos e problemáticos, aos quais sempre falta algo –tal qual o Espantalho sem cérebro, o Homem de Lata sem coração e o Leão Covarde sem coragem.
Esses personagens surgem ora nas histórias mirabolantes que Saylor e Lula contam um ao outro (a ninfomaníaca que se recusava a fazer sexo oral; ou o primo de Lula, vivido por Crispin Glover, acometido de insana esquizofrenia); ora cruzando o caminho dos dois (o velhote de voz esganiçada que reflete sobre pombos, ou a antológica aparição de Willem Dafoe no papel do cafajeste Bobby Peru) –entretanto, não é dado a nenhum deles a oportunidade de preencher magicamente suas deficiências, assim como os próprios protagonistas não estão lutando para voltar ao lar, como Dorothy, mas, ao contrário, estão tentando fugir dele.
Narrado num tom caricatural que desperta certa suspeita ao expectador –sobretudo, àquele expectador acostumado aos enigmas quase indecifráveis de Lynch –“Coração Selvagem” encontra, nas manobras tortuosas de seu próprio retrato do mal, um final terno e feliz para seus personagens principais (proporcionado pela intervenção da Bruxa Boa, Glinda, aqui vivida por Sheryl Lee, a própria Laura Palmer!) quando estes se agarram à única âncora sólida e real naquele mundo corrupto e pernicioso: O amor que têm um pelo outro.
E o amor, na verve poética de Lynch, é o fogo que queima –o elemento, não por acaso, de maior força visual na narrativa.

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