No princípio da década de 2000, quando
adaptações de histórias em quadrinhos eram fonte secundária de matéria-prima
para Hollywood, alguns autores já começavam a chamar a atenção por sua
genialidade insuspeita naquela indústria.
Certamente, um dos principais nomes era Alan
Moore.
Autor daquela tida como a melhor graphic-novel
de todos os tempos (“Watchmen”, adaptada em 2009 por Zack Snyder), Moore era
avesso à badalações, purista para com sua arte (com o tempo até histórias em
quadrinhos ele passou a repudiar, dando prioridade à literatura) e
absolutamente contrário à versões de suas obras para outras mídias.
No entanto, a que se compreender que era
difícil passar os olhos no compêndio extenso e primoroso em forma de narrativa
chamado “Do Inferno” (sobre as enevoadas investigações e as mais mirabolantes
teorias em torno das atrocidades cometidas por Jack, O Estripador) e não
imaginar que filme sensacional ele não daria...
Se “Do Inferno”, o filme que por fim terminou
sendo realizado, não chega ao patamar de obra-prima que a HQ facilmente
adquiriu, pelo menos, resulta numa adaptação criativa e interessante, ainda que
inevitavelmente inferior dada a grande qualidade e a vasta minúcia informativa
do material original.
1888. Final da Era Vitoriana. Em Londres,
prostitutas de um grupo no paupérrimo distrito de Whitechapel começam a
aparecer sucessivamente vítimas de hediondos assassinatos que abalam a
comunidade da época, ganhando o clamor popular e o status de lenda urbana. O
maníaco que perpetra tais atrocidades se auto-intitula Jack, O Estripador.
Tudo começa quando as cinco prostitutas de
Whitechapel, Mary Kelly (a maravilhosa Heather Grahan), Dark Annie (Katrin
Cartlidge), Liz (Suzan Lynch), Martha (Samantha Spiro) e Kate (Lesley Sharp)
testemunham o nebuloso sequestro de sua amiga Ann Crook (Joanna Page) em companhia
de seu amado Albert (Mark Dexter), um ‘príncipe encantado’ segundo ela com quem
tinha se casado em segredo (somente suas cinco amigas foram testemunhas do
casamento), tivera uma filha e que prometera tirar-lhe das ruas.
O que as mulheres não sabiam era que Albert era
nada menos que o príncipe da Inglaterra (!), e sua insistência no
relacionamento com uma ex-prostituta levou a Família Real a acionar recursos um
tanto... imprevisíveis.
Logo, Martha é encontrada morta, em
circunstâncias absolutamente atrozes e cruéis. A Scotland Yard passa a
investigar o crime designando para a tarefa o Inspetor Abberline (Johnny Depp,
sempre muito bom), viciado em ópio e acometido de lampejos de uma certa mediunidade.
Apesar das inúmeras dificuldades que parecem
emergir o caso num miasma de suspeitos infindáveis e uma rede complexa de
alianças e conspirações (além de novos crimes que se sucederem com as mortes de
Dark Annie, Elizabeth e Catherine afunilando a situação), Abberline consegue
descobrir as conexões dos crimes que vão desde a sociedade secreta Maçom até as
revelações acerca da criança e do casamento de Albert que podem comprometer a
Família Real, e que chegam no fanatismo psicopata então despercebido de um dos
mais prestigiados médicos a serviço da realeza, Dr. William Gull (o saudoso Ian
Holm).
A despeito de uma relativa displicência na
direção dos Irmãos Albert e Allen Hugues (realizadores do posterior “O Livro de
Eli”, com Denzel Washington), eles compensam seus lapsos com um acabamento
visual digno de aplausos, e a trama fictícia idealizada por Alan Moore –e
vertida para cinema com o máximo possível de dignidade pelos roteiristas Rafael
Iglesias e Terry Hayes –preenche magnificamente bem as lacunas presentes na
história real de uma das maiores lendas urbanas da história: Dessa maneira –e
cabe avisar que a partir daqui haverão spoilers –a personagem Mary Kelly, a
última das vítimas do Estripador (alçada aqui ao status de personagem
principal), termina não morrendo (!), confundida, na verdade, com a
desconhecida e desafortunada Ada (Estelle Skornik). O destino de Mary Kelly
–bem mais feliz e reconfortante na ficção imaginada por Alan Moore –é fugir
para longe de Londres, junto da filha de Ann e Albert, que passou a criar como
sua.
Embora ostente todas as
vibrantes características dos filmes de suspense e psicopatas que predominaram
no período (como “Hannibal”, lançado no mesmo ano), o que realmente fascina em
“Do inferno” são as brilhantes ramificações imaginadas por Alan Moore que
evoluem a mera premissa de um serial-killer para a mais sórdida e envolvente
das conspirações.
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