Experimentação radical e, não raro, extrema da parte do diretor japonês Takashi Miike –que, de fato, já havia habituado o público a dele esperar algo nesses níveis –o quase experimental “Visitor Q” é um reaproveitamento do conceito audacioso de “Teorema”, de Pier Paolo Passolini, e por extensão, um título inesperadamente japonês derivado do movimento dinamarquês Dogma 95, a remeter trabalhos transgressivos de Lars Von Trier e sua turma –ele próprio um herdeiro do cinema do choque de Passolini.
Filmado com câmera digital, e narrado por
imagens granuladas de precariedade proposital, “Visitor Q” testa maneiras
intoleráveis de desconcertar o expectador: A primeira cena já dá uma ideia de
seu atrevimento radical; um pai (Kenichi Endo) e uma filha, numa iminente,
despojada e lamentável cena de sexo (!).
O incesto é só primeiro dos inúmeros temas
espinhosos que o filme irá abordar com o desprendimento de uma comédia de
costumes, mas com o subtexto de uma obra para pouquíssimos públicos.
Essa família japonesa –da qual a filha vista no
prólogo é o membro mais ausente –carrega nas tintas mais disfuncionais
possíveis: A mãe (Shungicu Ushida), omissa e passiva, é agredida pelo filho
mais novo (Jun Muto) com os mais banais dos pretextos; o filho, por sua vez,
descarrega a violência nela devido ao bullying ultrajante que sofre e que é
incapaz de confrontar (seus algozes atiram fogos de artifícios em seu quarto e
o obrigam a humilhações tremendas quando está na rua); e o pai, diante de seu
fracasso e mediocridade em todos os âmbitos (doméstico, profissional, sexual)
tenta lucrar com uma espécie de ‘reportagem-denúncia’ onde filma o próprio
filho sendo torturado (!), a fim de compensar o fiasco maior de sua carreira,
uma matéria onde os arruaceiros que tentou entrevistar lhe tomaram o microfone
para introduzir-lhe no ânus (!!!).
“Visitor Q” é assim uma narrativa onde são
equilibradas as variações mais torpes do ser humano, num gradual aumento de
sordidez e bizarrice; e o mais impressionante é que trata-se apenas do começo:
Como em “Teorema”, a premissa gira em torno da chegada de um visitante à esse
casa de loucos, o tal visitante Q (Kazushi Watanabe).
E ele se mostra tão absurdo e demente quanto as
pessoas que veio visitar: Surge metendo uma pedrada na cabeça do pai, que o
desconhece completamente. Apesar disso, é convidado por ele a ir em sua casa
(!), por onde ele fica durante alguns dias, flagrando a rotina de abusos e
degradações impronunciáveis –entre outras coisas, o vício em heroína e a
prostituição da mãe que ganha algum dinheiro com isso.
Como na obra de Passolini, o visitante trás
também neste seio familiar uma espécie de mudança, entretanto, se em “Teorema”
esse agente transformador tinha por objetivo revelar as hipocrisias
contundentes acobertadas pela fachada burguesa da classe alta italiana, aqui,
nesta implacável e inconsequente crítica à decadência dos valores familiares e
sociais, a mudança trazida pelo visitante é que tudo o que já era ruim, fica
ainda pior!
O pai e a mãe, dos indivíduos colhidos no
turbilhão de ultrajes que eram passam a ser praticamente psicóticos homicidas a
partir do momento em que são encorajados a retribuir a ofensa que recebem –o
pai mata sua ex-amante, descobrindo na sequência sua nauseante predisposição à
necrofilia (!); e junto da mãe, mais tarde, dão cabo de maneira absolutamente
caricata aos torturadores do filho.
A sua maneira extremamente assustador, com seus
desvios comportamentais que registra sem retoques e sem idealizações
atenuantes, “Visitor Q” é, por detrás da perversão doentia que expõe sem freios
ao expectador, um tratado cinematográfico radical sobre a falência cultural das
famílias japonesas do Novo Século onde o contraponto entre o conservadorismo da
tradição e os desdobramentos da modernidade geraram uma crise de convivência
geracional tão abissal quanto alarmante.
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