quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Visitor Q


 Experimentação radical e, não raro, extrema da parte do diretor japonês Takashi Miike –que, de fato, já havia habituado o público a dele esperar algo nesses níveis –o quase experimental “Visitor Q” é um reaproveitamento do conceito audacioso de “Teorema”, de Pier Paolo Passolini, e por extensão, um título inesperadamente japonês derivado do movimento dinamarquês Dogma 95, a remeter trabalhos transgressivos de Lars Von Trier e sua turma –ele próprio um herdeiro do cinema do choque de Passolini.

Filmado com câmera digital, e narrado por imagens granuladas de precariedade proposital, “Visitor Q” testa maneiras intoleráveis de desconcertar o expectador: A primeira cena já dá uma ideia de seu atrevimento radical; um pai (Kenichi Endo) e uma filha, numa iminente, despojada e lamentável cena de sexo (!).

O incesto é só primeiro dos inúmeros temas espinhosos que o filme irá abordar com o desprendimento de uma comédia de costumes, mas com o subtexto de uma obra para pouquíssimos públicos.

Essa família japonesa –da qual a filha vista no prólogo é o membro mais ausente –carrega nas tintas mais disfuncionais possíveis: A mãe (Shungicu Ushida), omissa e passiva, é agredida pelo filho mais novo (Jun Muto) com os mais banais dos pretextos; o filho, por sua vez, descarrega a violência nela devido ao bullying ultrajante que sofre e que é incapaz de confrontar (seus algozes atiram fogos de artifícios em seu quarto e o obrigam a humilhações tremendas quando está na rua); e o pai, diante de seu fracasso e mediocridade em todos os âmbitos (doméstico, profissional, sexual) tenta lucrar com uma espécie de ‘reportagem-denúncia’ onde filma o próprio filho sendo torturado (!), a fim de compensar o fiasco maior de sua carreira, uma matéria onde os arruaceiros que tentou entrevistar lhe tomaram o microfone para introduzir-lhe no ânus (!!!).

“Visitor Q” é assim uma narrativa onde são equilibradas as variações mais torpes do ser humano, num gradual aumento de sordidez e bizarrice; e o mais impressionante é que trata-se apenas do começo: Como em “Teorema”, a premissa gira em torno da chegada de um visitante à esse casa de loucos, o tal visitante Q (Kazushi Watanabe).

E ele se mostra tão absurdo e demente quanto as pessoas que veio visitar: Surge metendo uma pedrada na cabeça do pai, que o desconhece completamente. Apesar disso, é convidado por ele a ir em sua casa (!), por onde ele fica durante alguns dias, flagrando a rotina de abusos e degradações impronunciáveis –entre outras coisas, o vício em heroína e a prostituição da mãe que ganha algum dinheiro com isso.

Como na obra de Passolini, o visitante trás também neste seio familiar uma espécie de mudança, entretanto, se em “Teorema” esse agente transformador tinha por objetivo revelar as hipocrisias contundentes acobertadas pela fachada burguesa da classe alta italiana, aqui, nesta implacável e inconsequente crítica à decadência dos valores familiares e sociais, a mudança trazida pelo visitante é que tudo o que já era ruim, fica ainda pior!

O pai e a mãe, dos indivíduos colhidos no turbilhão de ultrajes que eram passam a ser praticamente psicóticos homicidas a partir do momento em que são encorajados a retribuir a ofensa que recebem –o pai mata sua ex-amante, descobrindo na sequência sua nauseante predisposição à necrofilia (!); e junto da mãe, mais tarde, dão cabo de maneira absolutamente caricata aos torturadores do filho.

A sua maneira extremamente assustador, com seus desvios comportamentais que registra sem retoques e sem idealizações atenuantes, “Visitor Q” é, por detrás da perversão doentia que expõe sem freios ao expectador, um tratado cinematográfico radical sobre a falência cultural das famílias japonesas do Novo Século onde o contraponto entre o conservadorismo da tradição e os desdobramentos da modernidade geraram uma crise de convivência geracional tão abissal quanto alarmante.

A cena final sinaliza uma redenção, á sua maneira, também audaciosa e desconcertante: A mãe, redimida do vício e da prostituição, oferece seus seios vertentes de leite materno ao pai e à filha –a prostituta em regresso ao lar –numa espécie de retorno à condição de crianças em amamentação. Um momento de assombro surreal, mas que ainda assim, está entre os mais leves e implícitos deste insano e inacreditável conto de dissolução moral.

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