Eu lembro de “Drowning By Numbers” da época do VHS. Lembro de ser uma fita rara de se achar já naqueles tempos (Peter Greenaway, em geral, era uma presença comercialmente controversa nas locadoras, assim como nas salas de cinema). Lembro que sua fama cult já corria de boca em boca entre os ‘ratos de locadora’ de então.
Ao conferi-lo hoje, chega até a espantar o fato
dele, deveras, pertencer àquele período: “Drowning By Numbers” é uma obra tão
desprendida, tão sagaz e pertinente que lembra, e muito, as realizações de Wes
Anderson, pelas quais ele é amplamente aclamado. Entretanto, Greenaway é mais
ácido, e menos conciliador, mais despreocupado com o exaspero que sua arte pode
provocar e menos incomodado em fazer-se acessível. Em 1987 (lançamento deste
filme), essa postura o confinou à apreciação da seara dos filmes de arte
alternativos.
Na noite em que flagra seu marido, Jake (Bryan
Pringle), num gaiato ensaio de infidelidade com a avoada (e nua!) vizinha
bêbada Nancy (Jane Gurnett), sua esposa, a senhora Cissie Colpitts (Joan
Plowright, de “Te Amarei Até Te Matar”) o afoga –basta afundar sua cabeça na
banheira que muito displicentemente ele usava para a embriaguez fazer todo o
resto...
Na manhã seguinte, a narrativa de Peter
Greenaway evidencia os rumos inesperados que tudo haverá de seguir: Sem
aparentar maiores sobressaltos, Cissie comunica o homicídio às duas filhas, que
também têm, ambas, o nome de Cissie (!!) (vividas por Juliet Stevenson, a mais
velha, de “Emma”, e pela belíssima Joely Richardson, a mais nova).
Contudo, o principal notificado vem a ser o
fazendeiro e médico-legista nas horas vagas (!), Madget (Bernard Hill, de “O Senhor dos Anéis-As Duas Torres”) que, devido à sua ocupação, tem o poder de
acrescentar no boletim de óbito a causa da morte por ataque cardíaco seguido de
afogamento, inocentando assim a nada inocente Cissie.
Madget o faz, impelido pela promessa de ter seu
desejo por Cissie correspondido –na verdade, longe de qualquer sugestão de
monogamia, Madget parece nutrir desejo por todas as mulheres daquela família, a
mãe e as filhas! –contudo, nos dias que se seguem, ele vê sua recompensa ser
protelada. Até então, é flagrante o clima e a circunstância tão pouco usuais
com que o diretor e roteirista Greenaway captura esses personagens: Também um
pintor, ele ilustra as cenas de seu filme, auxiliado pelo diretor de fotografia
Sacha Vierny (de “O Ano Passado Em Marienbad”), como quadros expressionistas,
onde infindáveis detalhes de fundo podem ser observados. Na realidade, todo um
emprego incessante e emblemático das artes em conjunto, pode ser visto ao longo
do filme, com seu uso imodesto de cores alternadas, iluminação incomum e
inquieta, ângulos de câmeras carregados de inconformismo, e uma forte
desconstrução da realidade permitida apenas pelas vastas possibilidades do
cinema.
Também o tom adotado para a trama, assim como o
excentrismo a predominar nos personagens é, todo ele, desigual: Cissie, a filha
mais velha, é casada com um escritor frustrado e gordo que passa nu a maior
parte do tempo (!), a despeito das manobras indiferentes para desvencilhar-se
das expressões de contato físico da esposa; já, Cissie, a filha mais nova, no
fervor sexual de seus dezenove anos, está à beira de casar com o ignóbil Belamy
(Paul Morrissey, de “Instinto Selvagem 2”), um bombeiro que não sabe nadar (!),
a despeito do fato de que muito pouco o ama... Dentre tantas figuras capturadas
no irreprimível registro de humor negro das suas excentricidades, há um curioso
destaque para o filho de Madget, Smuts (Jason Alexander, de “O Enigma do
Horizonte”), um adolescente mórbido obcecado por insetos, números e jogos
variados e essas três características, em grande medida, definem o filme: Os
insetos são mostrados todo o tempo, numa ênfase subliminar da vida selvagem no
campo (onde tudo se ambienta); os números determinam a concepção matemática que
Greenaway confere à narrativa do início ao fim; e os jogos (bem como as
entusiasmadas especificações nem sempre claras de suas regras) surgem a todo
instante, pontuando a narrativa, tornando-a episódica, estabelecendo uma
relação com tudo o que se passa devido à narrativa em off.
E o que se passa é quase uma bola de neve do
absurdo: Dias após o ocorrido com a Cissie, mãe, a Cissie, filha mais velha,
cede às tentações e à indignação e permite que seu marido se afogue na praia,
acometido por um mal súbito quando vai nadar. Sequer passa uma semana e Cissie,
a filha mais nova, faz o mesmo, deixando que seu marido se afogue na piscina
pública local, destituído das bóias que ela mesma tirou (!). Na sucessão de
cada um desses ocorridos, é Madget quem haverá de garantir o álibi das três
mulheres, movido por seu interesse cada vez mais abalado por cada uma delas.
Não há, no entanto, e apesar de todo esse
fatalismo, qualquer indício de suspense, ou mesmo de alguma dramaticidade mais
enfatizada, nesta obra de Greenaway, ele prefere um senso de leveza com o qual
vislumbra impressões muito mais singulares, embora também nunca deixe de chocar
o público com várias –e, às vezes, até cruéis –sacadas sobre a natureza
auto-destrutiva do ser humano.
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