quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Afogando Em Números


 Eu lembro de “Drowning By Numbers” da época do VHS. Lembro de ser uma fita rara de se achar já naqueles tempos (Peter Greenaway, em geral, era uma presença comercialmente controversa nas locadoras, assim como nas salas de cinema). Lembro que sua fama cult já corria de boca em boca entre os ‘ratos de locadora’ de então.

Ao conferi-lo hoje, chega até a espantar o fato dele, deveras, pertencer àquele período: “Drowning By Numbers” é uma obra tão desprendida, tão sagaz e pertinente que lembra, e muito, as realizações de Wes Anderson, pelas quais ele é amplamente aclamado. Entretanto, Greenaway é mais ácido, e menos conciliador, mais despreocupado com o exaspero que sua arte pode provocar e menos incomodado em fazer-se acessível. Em 1987 (lançamento deste filme), essa postura o confinou à apreciação da seara dos filmes de arte alternativos.

Na noite em que flagra seu marido, Jake (Bryan Pringle), num gaiato ensaio de infidelidade com a avoada (e nua!) vizinha bêbada Nancy (Jane Gurnett), sua esposa, a senhora Cissie Colpitts (Joan Plowright, de “Te Amarei Até Te Matar”) o afoga –basta afundar sua cabeça na banheira que muito displicentemente ele usava para a embriaguez fazer todo o resto...

Na manhã seguinte, a narrativa de Peter Greenaway evidencia os rumos inesperados que tudo haverá de seguir: Sem aparentar maiores sobressaltos, Cissie comunica o homicídio às duas filhas, que também têm, ambas, o nome de Cissie (!!) (vividas por Juliet Stevenson, a mais velha, de “Emma”, e pela belíssima Joely Richardson, a mais nova).

Contudo, o principal notificado vem a ser o fazendeiro e médico-legista nas horas vagas (!), Madget (Bernard Hill, de “O Senhor dos Anéis-As Duas Torres”) que, devido à sua ocupação, tem o poder de acrescentar no boletim de óbito a causa da morte por ataque cardíaco seguido de afogamento, inocentando assim a nada inocente Cissie.

Madget o faz, impelido pela promessa de ter seu desejo por Cissie correspondido –na verdade, longe de qualquer sugestão de monogamia, Madget parece nutrir desejo por todas as mulheres daquela família, a mãe e as filhas! –contudo, nos dias que se seguem, ele vê sua recompensa ser protelada. Até então, é flagrante o clima e a circunstância tão pouco usuais com que o diretor e roteirista Greenaway captura esses personagens: Também um pintor, ele ilustra as cenas de seu filme, auxiliado pelo diretor de fotografia Sacha Vierny (de “O Ano Passado Em Marienbad”), como quadros expressionistas, onde infindáveis detalhes de fundo podem ser observados. Na realidade, todo um emprego incessante e emblemático das artes em conjunto, pode ser visto ao longo do filme, com seu uso imodesto de cores alternadas, iluminação incomum e inquieta, ângulos de câmeras carregados de inconformismo, e uma forte desconstrução da realidade permitida apenas pelas vastas possibilidades do cinema.

Também o tom adotado para a trama, assim como o excentrismo a predominar nos personagens é, todo ele, desigual: Cissie, a filha mais velha, é casada com um escritor frustrado e gordo que passa nu a maior parte do tempo (!), a despeito das manobras indiferentes para desvencilhar-se das expressões de contato físico da esposa; já, Cissie, a filha mais nova, no fervor sexual de seus dezenove anos, está à beira de casar com o ignóbil Belamy (Paul Morrissey, de “Instinto Selvagem 2”), um bombeiro que não sabe nadar (!), a despeito do fato de que muito pouco o ama... Dentre tantas figuras capturadas no irreprimível registro de humor negro das suas excentricidades, há um curioso destaque para o filho de Madget, Smuts (Jason Alexander, de “O Enigma do Horizonte”), um adolescente mórbido obcecado por insetos, números e jogos variados e essas três características, em grande medida, definem o filme: Os insetos são mostrados todo o tempo, numa ênfase subliminar da vida selvagem no campo (onde tudo se ambienta); os números determinam a concepção matemática que Greenaway confere à narrativa do início ao fim; e os jogos (bem como as entusiasmadas especificações nem sempre claras de suas regras) surgem a todo instante, pontuando a narrativa, tornando-a episódica, estabelecendo uma relação com tudo o que se passa devido à narrativa em off.

E o que se passa é quase uma bola de neve do absurdo: Dias após o ocorrido com a Cissie, mãe, a Cissie, filha mais velha, cede às tentações e à indignação e permite que seu marido se afogue na praia, acometido por um mal súbito quando vai nadar. Sequer passa uma semana e Cissie, a filha mais nova, faz o mesmo, deixando que seu marido se afogue na piscina pública local, destituído das bóias que ela mesma tirou (!). Na sucessão de cada um desses ocorridos, é Madget quem haverá de garantir o álibi das três mulheres, movido por seu interesse cada vez mais abalado por cada uma delas.

Não há, no entanto, e apesar de todo esse fatalismo, qualquer indício de suspense, ou mesmo de alguma dramaticidade mais enfatizada, nesta obra de Greenaway, ele prefere um senso de leveza com o qual vislumbra impressões muito mais singulares, embora também nunca deixe de chocar o público com várias –e, às vezes, até cruéis –sacadas sobre a natureza auto-destrutiva do ser humano.

Uma fábula sobre o poder feminino da persuasão e um exercício bastante singular de um estilo que se manteria indomável em projetos posteriores, “Drowning By Numbers” resistiu ao teste do tempo como um deleite visual intenso e intermitente (as referências à História da Arte e à Matemática ao longo das imagens são impressionantes) e uma junção desconcertante e inquietante entre comédia inglesa e tragédia humana.

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