domingo, 8 de janeiro de 2023

O Cemitério da Honra


 Takashi Miike, entre outras facetas, se revelou também um diretor capaz de levar novas e imprevistas repaginações às abordagens tidas por clássicas de determinadas histórias. Ele, por exemplo, converteu a evocação aventuresca e refinada de Kurosawa por Eiichi Kudo em “13 Assassinos” num caos primoroso, belo e sangrento, e transformou a dramaturgia contundente de Kobayashi numa orgia de sofrimento humano e vingança brutal em “Harakiri”. Em “O Cemitério da Honra” –ou “Shin Jingi No Hakaba” –Miike modifica a narrativa precisa, profissional e concisa e Kinji Fukasaku em “Alugados Pelo Inferno” para dela fazer um tratado sólido, inquietante e implacável sobre o sadismo, a crueldade e a inconsequência –e como tudo ao redor tende a se obliterar quando esses elementos se mesclam.

Lançado em 2002, dois anos após Miike ter entregado, em 1999, uma de suas obras-primas, “Audition” (mas, não se engane, entre os dois, ele realizou nada menos do que 13 filmes!!), “Shin Jingi No Hakaba” é um filme sobre a yakuza –um profuso sub-gênero cinematográfico no Japão –que acaba agregando certas características de imprevisibilidade que remetem ao famoso trabalho de Miike: Como em “Audition”, temos um protagonista arremessado numa trajetória de dor, sangue e deterioração; neste caso, Rikio Ishimatsu vivido por Gorô Kishitani (de “Operação Corvo”) sem a menor predisposição de ganhar qualquer simpatia do expectador. Como em “Audition”, não há aqui um único resquício de esperança na raça humana –os personagens são tratados com amoralidade palpitante e mesmo as relações com um mínimo de pureza são fadadas aos mais inclementes desfechos. Como em “Audition”, a técnica narrativa de Takashi Miike sistematicamente subverte as impressões do público, escolhendo o espinhoso caminho do choque e de um horror gráfico que beira o imponderável.

Sabemos desde o prólogo –situado numa penitênciária –que as escolhas de Rikio haverão de levá-lo à um beco sem saída. Por meio de um habitual flashback, o diretor Takashi Miike haverá de provar que os percalços até chegar a tal fim são, eles sim, de um entrave desconcertante. Daí ser tão tranquila a forma como inicialmente ele já nos entrega o destino final de seu protagonista.

“Os fins justificam os meios” como diria Shakespeare; mas, Takashi Miile, contudo, vai mais longe: Se o fim é de tal maneira pungente, o caminho transcorrido para chegar lá foi, certamente, exacerbante.

Rikio é, do início ao fim, um psicopata. Lavador de pratos num restaurante de Tóquio, ele não teme a morte ou a brutalidade porque não se importa com absolutamente nada. Nessas condições, ele acaba detendo um atirador e, sem querer, salvando um chefe de yakuza. Surpreso com a demonstração de bravura, o chefe o inclui em seu círculo de confiança e faz dele seu capanga, numa manobra da qual haverá de se arrepender amargamente. Pois, Rikio é despido de qualquer escrúpulo. Com a autoridade e truculência conferida pelo status de yakuza, ele se torna um touro ensandecido numa loja de cristais: Afronta e enfrenta qualquer um que lhe passar pela frente, seja quem for.

O destempero de Rikio, para os propósitos da yakuza, vez ou outra, até tem sua serventia –ele promove, alegremente, uma chacina numa gangue rival, indo parar no presídio apenas por que não quis negar o crime afirmando achar aquilo “um ato de covardia” (!). É lá que ele conhece Imamura (Ryôsuke Miki), um gangster bem posicionado em outro clã que se torna seu amigo.

Na maior parte das vezes, porém, Rikio nada mais é –para todos (ou pelo menos a maioria) à sua volta –uma panela de pressão prestes a estourar.

E isso ocorre quando –num irônico momento em que o chefe se ausenta para ir ao dentista (!), deixando o grupo por exatas duas horas sem a serenidade de sua liderança –numa irritada discussão banal com alguns comparsas, Rikio quebra o crânio de um deles, tornando-se assim uma espécie de persona non grata aos olhos do clã.

Mesmo perseguido, e diante da necessidade de manter alguma discrição, Rikio promove um rastro de mortes e espancamentos, terminando acolhido por Imamura que, tal e qual o chefe antes dele, não consegue enxergar o que seus subalternos veem e não se atrevem a dizer: Que está acobertando um psicopata com data iminente para voltar sua sanha assassina contra ele próprio pelo mais irrisório dos motivos.

Somente um diretor como Takashi Miike seria de fato capaz de compor um relato com as tonalidades que ele confere à “Shin Jingi No Hakaba”; ele elabora uma série de cenas precisas e eficazes em baixa voltagem, o suficiente para que tenhamos uma noção de motivação e conduta dos personagens, para então, confrontá-los com situações terríveis num nível quase extremo de sanguinolência e crueldade. E todas elas, perpetradas por seu instável protagonista: Rikio lembra, em diversos momentos, a maldade inapelável de Alex De Large, em “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, um personagem imerso na única linguagem que sabe e entende, a violência, numa rota de encontro ao castigo por seus excessos. Diferente porém, do teor corrosivamente analítico de Kubrick, Miike compartilha aqui uma espécie de êxtase perverso com todo o flagelo deflagrado.

Ele não se atenua nem mesmo quando foca em aspectos supostamente mais prosaicos de seu enredo, como a relação construída com Chieko (Nairimi Arimori) que –na transfiguração cortante promovida por Miike –foi inicialmente estuprada por Rikio (!!), até que ele torna-se um gosto adquirido (!?) virando seu esposo e viciando-a em heroína (!!!) tão longo começa sua derrocada entre os até então aliados do crime.

A diferença de Takashi Miike para outros diretores de cinema, pode-se dizer, é que ele entende e compreende que, em certos e absurdos aspectos, a narrativa serve a um embate de forças sempre providas de uma selvageria natural, necessária e, ocasionalmente, aterradora, inerente ao ser humano. E ele tem talento de sobra para enfatizar isso com tintas de um espanto mesmerizante.

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