quarta-feira, 1 de março de 2023

Elefante Branco


 O longo prólogo que antecede o título original do filme é um exemplo da audácia técnica dos realizadores argentinos; quase destituído de diálogos e amparado em planos cuidadosamente relacionáveis, ele lembra as sequências cinematograficamente densas construídas por Paul Thomas Anderson em seus trabalhos. O diretor Pablo Trapero, em sua técnica minimalista, não lhe fica nada a dever.

“Elefante Branco” retrata uma realidade que, para nós brasileiros, se mostra próxima e extremamente passível de identificação, aqui, entretanto, sob o prisma desigual de um cinema arrojado e potente. Os protagonistas do filme são dois homens diante de sua jornada; ainda não sabemos, mas, para um, tal jornada está para se encerrar, e para outro, ele está só começando. São eles, o Padre Julián (Ricardo Darín, magnífico) e o Padre Nicolás (Jéremie Renier, de “O Amante Duplo”). O caminho dos dois se cruza quando Julián resgata Nicolás, um missionário europeu, de um dos eventuais perigos mortais nas selvas sul-americanas, apinhadas de dissidentes políticos e executores cruéis –esse trecho, aliás, se sucede no prólogo mencionado. Das garras da morte –da qual não escapou sem alguns traumas emocionais e morais severos –Nicolás vai para o centro urbano da Argentina onde o Padre Julián toca sua paróquia fixada no coração nervoso de uma favela em polvorosa.

Lá há criminalidade e rixas frequentemente mortais entre as facções da vez. Lá, há também o auxílio altruísta da assistente social Luciana (Martina Gusman, que fez par com Darín em “Abutres”, dirigido também por Trapero, de quem é esposa), e lá há o assim chamado Elefante Branco –um prédio descomunal cuja construção interrompida diversas vezes, jamais foi concluída. Um lamentável fato que converteu o prédio, ao longo das décadas, numa espécie de refúgio para toda sorte de párias, desabrigados, viciados e marginais.

O papel do Padre Julián é equilibrar-se como pode entre as disputas territoriais das quadrilhas locais, que aliciam meninos da favela o tempo todo, e tentar prestar assistência aos moradores necessitados, enquanto procura obter recursos do governo, em parte para a continuidade das obras que poderão transformar o Elefante Branco num complexo de moradia para todos –um sonho distante que a árdua, perigosa e cruel realidade torna cada vez mais distante.

Mais do que apenas exercer seu papel de sacerdote a zelar por todos, de pacificador a reger uma tênue e instável trégua na comunidade, de figura paterna a instruir os meninos para que não cedam ao vício fácil que os instiga a cada esquina, o Padre Julián sonha também em instruir o Padre Nicolás para, quem sabe, substituí-lo algum dia, afrente da paróquia –o Padre Julián tem uma doença terminal –mas, o Padre Nicolás tem seus próprios problemas, entre eles, a convicção facilmente abalada de seu ofício, que sofre um forte questionamento quando seus sentimentos por Luciana começam a ficar mais profundos.

Primoroso em inúmeros aspectos técnicos e artísticos, “Elefante Branco” é um retrato  pulsante, periclitante, e prodigiosamente cinematográfico de celeumas sociais nada estranhas no nosso Brasil, composto de manejos narrativos dignos de Primeiro Mundo. É urgente e magistral como “Cidade de Deus”, alarmante e poético como “Pixote-A Lei do Mais Fraco” e ainda dá-se ao luxo de expor elementos originais em conjunção com sua bem-acabada dramaturgia como as sequências tensas e extenuantes onde são evidenciados os efeitos terríveis da combinação caótica entre políticas sociais ineficazes, desabrigados em desespero e truculência policial sem freios morais.

Um grande trabalho de sublime excelência e pertinente drama humano.

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