segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Abutres


 Mais uma obra magnífica do cinema argentino, “Abutres” extrai a brilhante trama que alberga seu minucioso roteiro das estatísticas alarmantes que envolvem o número de mortos em acidentes automobilísticos na América do Sul em geral e na Argentina em particular. O número de vítimas, afirmam os créditos iniciais, atinge a casa dos milhões por ano, e com o tempo, o sistema corrupto propiciou o nascimento de toda uma máfia organizada em torno das indenizações milionários cobradas às seguradoras.

Funciona assim: As vítimas têm seus danos físicos e morais ressarcidos em juízo, por firmas oportunistas de advogados. As indenizações são pagas aos familiares ou aos próprios acidentados, quando sobrevivem, mas numa quantia irrisória em relação ao valor real negociado em tribunal; na maioria desses casos, os advogados embolsam 95% do dinheiro.

Entretanto, tudo começa mesmo no momento do acidente, quando o sangue e a morte se fazem presente dando o estopim a essa prática criminosa.

Um desses advogados é Hector Sosa, vivido com a verve estupenda de sempre por Ricardo Darín –ele é um dos ‘abutres’; ronda os mortos mutilados e/ou acidentados, mal esperando o corpo esfriar para entrar com suas propostas judiciais. Às vezes –como ocorre numa das cenas iniciais –ele está presente no momento do acidente!

É quando ele conhece a paramédica Luján (Martina Gusman, também produtora executiva do filme). Em meio aos encontros e desencontros do ofício –ele está sempre orbitando acidentes e postos emergenciais, ela sempre atendendo aos chamados –eles descobrem uma atração e tentam esboçar um relacionamento, que não deixa de logo colidir com as diferentes posturas de ambos.

Este é basicamente o esteio moral que define do ponto de partida do filme de Pablo Trapero: Sosa não é de todo corrupto e mau-caráter, seus empregadores é que são, mas ele também faz vista grossa à insensibilidade para com a perda de vidas humanas. Luján, como outros de seu meio, sente relativo desdém pelos burocratas que rondam hospitais em busca desses casos de indenização, e tem seus valores aos quais seguir.

Sosa almeja sair desse ciclo vicioso, desse ambiente sórdido de paulatino desprezo e indiferença. Como advogado licenciado, ele possui planos para deixar aquela máfia de indenizações –que se estende desde os advogados de médio-porte, como ele, passa por policiais comprados com propina e vai até os medalhões com contatos nos tribunais –conhecida como ‘Fundação’. Contudo, Sosa conhece Luján, e as frequentes situações que o levam a cruzar-se com ela o fazem protelar sua partida.

A mulher que ele ama é abertamente contra os princípios que ele emprega nesse trabalho, mas é a presença dela que o leva a continuar nele.

Perspicaz, adulto e primorosamente envolvente, o filme vai levando os personagens nessas circunstâncias sem nunca acomodar-se numa situação, nem tampouco acelerar seu ritmo a ponto de não poder observar os brilhantes meandros assim revelados. Do ponto de vista de seus notáveis protagonistas, e amparado no fio narrativo romântico de seu tumultuado envolvimento, “Abutres” explora a crueza tentacular das corrupções que envolvem o fluxo de dinheiro entre as vítimas, as seguradoras e os intermediários dessas negociações, compondo mais um título honorável dentre as mais relevantes obras de cinema realizadas na América Latina.

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