domingo, 9 de junho de 2024

Uma Secretária de Futuro


 O saudoso diretor Mike Nichols sempre teve uma versatilidade desigual, essa capacidade, somada ao talento para sintonizar as sutilezas da atuação (oriundo de sua formação teatral) ajudou a moldar inúmeros projetos singulares que compõem a sua filmografia. Nela, há de tudo um pouco. Das raras comédias a concorrer à prestigiada estatueta de Melhor Filme na cerimônia do Oscar 1989 (prática que infelizmente perdura até hoje), “Uma Secretária de Futuro” é um título que se destaca: Por sua simpatia perene junto ao público que tornou-o um sucesso de bilheteria; pela escolha espetacular, primorosa e espirituosa de intérpretes, todos perfeitos (algo no qual Nichols era craque); e pela junção adequada, funcional e certeira de elementos, tais como um bom roteiro, boas atuações e uma ótima direção.

Interpretada com fulgor fora do comum por Melanie Griffith (uma atriz com algo de alternativo que, na época, dificilmente seria uma escolha convencional para um papel como este), Tess McGill é uma das muitas assalariadas que luta por ter lugar ao sol na disputada (e machista) Nova York da década de 1980. Todos os dias, ela pega a balsa que a leva da suburbana Nova Jersey –onde tenta levar uma vida doméstica, pacata e pretensamente estabelecida ao lado do noivo (Alec Baldwin) –para a competitiva e inclemente Manhattan, onde estão os tubarões corporativistas da bolsa de valores que normalmente atuam como seus patrões; Tess é secretária.

Um deles (Oliver Platt) não tarda a lhe preparar uma armadilha: Julgando ser uma entrevista de emprego para um cargo melhor, Tess acaba na limusine de um executivo disposto à seduzí-la –uma ponta de um ainda desconhecido Kevin Spacey, da época em que atuava mais como comediante. Como pedir demissão na situação financeira de classe média-baixa em que vive é um risco e tanto, Tess tem consciência da urgência em arrumar outro ganha-pão. E ela julga que sua sorte pode finalmente mudar quando começa a trabalhar para a empoderada e discursivamente encorajadora Katharine Parker (Sigourney Weaver, afiadíssima) –afinal, com uma mulher como chefe, imagina Tess, as chances de crescer profissionalmente se tornam reais, longe da indulgência tipicamente masculina, não é mesmo?

Contudo, não é exatamente isso que acontece: Ao sugerir uma ideia bastante original e arguta que teve para Katharine –a de investir, não em emissoras de TV, no ramo de propaganda, mas em emissoras de rádio, por conta dos valores e das complexidades de negociações serem infinitamente mais razoáveis –Tess descobre que Katharine tentou lhe passar a perna. Durante uma tumultuada semana em que Katharine sofre uma fratura andando de esqui, Tess fica sabendo que ela lhe roubou a ideia e iniciou negociações preliminares com um tal de Jack Trasker (Harrison Ford, no auge de sua fase galã). Ao aproveitar-se da ausência de Katharine para passar-se por uma das acionistas a fim de conduzir a negociação, Tess inicia uma relação profissional promissora ao lado de Jack, que acaba progredindo para uma relação mais íntima também –e em ambos os casos, Tess sabe que terá a competição acirrada e desleal de Katharine.

A narrativa que Mike Nichols constrói em “Uma Secretária de Futuro” é, até hoje, pra lá de saborosa: Não apenas ele faz uso imodesto dos elementos de comédia romântica presentes na trama (os encontros e desencontros entre Tess e Jack são simultaneamente deliciosos de se acompanhar) como também se vale de um expediente muito comum em obras graciosas dos anos 1980, onde um, ou uma, protagonista finge, por razões até que nobres, guardadas as proporções, ser aquilo que não é, e cria toda uma farsa a um só tempo divertida e tensa com data de validade para terminar (pois, mentira, apesar dos pesares, ainda tem perna curta!), premissa que funcionou para as mais diversificadas produções como “Tootsie”, “Quase Igual Aos Outros”, “Um Príncipe Em Nova York”, “Tocaia” e tantas outras, aliado a isso, ele ainda elabora uma observação contundente, envolvente e cheia de propriedade, do competitivo mercado de trabalho yuppie dos anos 1980, amparada numa personagem principal cheia de iniciativa, pioneira das personagens femininas a se posicionar com independência e auto-afirmação perante os homens em um universo predominantemente masculino.

Em tempo: Já a adentrar os anos 1990, algum executivo da NBC teve a ideia de criar uma série de TV inspirada em “Uma Secretária de Futuro” –ou “Working Girl”, seu título original –e a atriz que interpretou Tess McGill nos oito episódios que essa série pouquíssimo lembrada durou foi uma ainda desconhecida Sandra Bullock!

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