quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Rabbits


 Incômodo, intrigante e reflexivo, “Rabbits” é uma minissérie realizada por David Lynch composta de oito episódios que nada mais mostram senão um trio de coelhos (mas, coelhos humanóides, trajados como seres humanos, e interpretados, segundo os créditos por Scott Coffey, Naomi Watts e Laura Elena Herring; essas duas, protagonistas de “Cidade dos Sonhos”) moradores de um apartamento (do qual só vemos a sala de estar), personagens do que aparenta ser uma espécie de sitcom.

O plano de câmera abrange toda a pequena sala de estar do apartamento, ao mesmo tempo em que parece realmente conferir aos personagens as dimensões reduzidas de coelhos. Súbito, o coelho que veste terno e gravata entra pela porta (acompanhado por um até que estrondoso ruído de aplausos, tal e qual numa –de novo –sitcom) e passa a fazer acompanhia às outras duas coelhas no recinto; uma delas passava à ferro as roupas com indiferença, enquanto a outra estava sentada no sofá. Há um som de chuva constante emanando do lado de fora, mas o elemento que desconcerta de fato o expectador são os diálogos, absolutamente destituídos de qualquer sentido, que eles trocam.

Apesar de, vez ou outra, durante esses diálogos incompreensíveis (frases como “Que horas são?” ou “Eu ainda vou descobrir o que está acontecendo” são intercaladas por respostas e/ou afirmações que não dizem nenhum respeito ao que acabou de ser dito) haverem inserções de risos da platéia, essas interações não despertam um pingo de humor. Muito pelo contrário: Devido ao clima de estranheza que logo se instala e, principalmente, à trilha macabra que acompanha cada instante desses episódios, “Rabbits” mergulha o expectador num desconforto deliberado e intenso, similar ao mais opressivo filme de terror.

Teorias na internet (na medida em que trabalhos de David Lynch permitem toda da sorte de interpretação) dão conta de que os diálogos entre os três personagens estão embaralhados e que, ao justapô-los na ordem correta, a verdadeira trama de “Rabbits” começa a se revelar: Nela, uma possessão demoníaca (!) leva alguém a abusar do que parece ser  uma pessoa jovem, e essa vítima cria os personagens dos coelhos em sua cabeça para racionalizar, na medida do possível, seu tormento. A chuva intermitente que se houve do lado de fora do recinto seria, assim, o seu choro de tristeza. É por isso também que, num dos trechos mais aflitivos e desconcertantes de “Rabbits” vemos o quarto ser inundado por uma desconfortável luz avermelhada (o momento fatídico do abuso, talvez) enquanto ouvimos uma voz cavernosa pronunciar palavras tão horripilantes quanto incompreensíveis  (uma referência satânica).

No entanto, como em tantas obras de Lynch, tudo aquilo que você compreende da experiência de “Rabbits” não vai, necessariamente, importar: Seja ele indecifrável ou não, o que fica é a experiência exasperante, de pavor genuíno e desconforto autêntico que ele tem o poder de despertar no público –relatos dão conta de que cientistas nos EUA exibiam “Rabbits” para pessoas nas quais eles tinham intenção de gerar crises existenciais!

David Lynch, o maestro do macabro, o senhor da escuridão e dos sonhos esquecidos acertou de novo: Eis aqui um produto brilhante, onde a imaginação extraída de recôncavos obscuros da mente é combustível para uma realização que potencializa a arte em seu estado mais puro e vibrante.

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