sábado, 30 de janeiro de 2016

Cidade dos Sonhos

O acidente de carro que irrompe na tela logo no início do filme parece ser o fator que determinará a trama dali por diante, mas nada nos filmes de David Lynch exerce qualquer determinância sobre a trama. Tudo é névoa, e tudo é nebuloso, como uma lembrança que já escapa à definição da memória. 
Anônima e desmemoriada, a bela sobrevivente desse acidente encontra abrigo no apartamento de uma aspirante à atriz em Hollywood (que é onde elas estão, mais especificamente na rua Mulholland Drive, título original deste filme, à propósito).
A aspirante à atriz, potencial protagonista detetivesca dessa premissa assim anunciada é introduzida com todo pomposo artificialismo que um dia pairou sobre filmes de gênero; e Lynch domina tal linguagem como um especialista: Alguns expectadores não perceberão a afetação tóxica que ele impõe a essa mundo caracterizado no qual ele emoldura suas duas estrelas.
Seguem-se as investigações de praxe para se tentar descobrir quem a desmemoriada é, embalados por uma concepção de mundo caricata, emblemática e simbólica da parte do diretor Lynch. A investigação leva a um envolvimento entre as duas –e a cena de sexo entre as belas Naomi Watts e Laura Elena Harring filmada por Lynch é de um fetichismo poderoso –mas a superficial impressão de conto de fadas dura pouco: Todas as pistas culminam no Bar Silencio, onde as máscaras cairão, e a realidade como ela antes era ressurgirá, sórdida, dolorosa, cheia de rancor, injustiça e manipulação, tudo o quê uma das protagonistas estava lutando para esquecer.
Em "Cidade dos Sonhos", David Lynch entrega-nos, pois, dois distintos filmes, complementares um do outro no mesmo sentido em que a verdade é o complemento da mentira.
Como é, talvez, o único aspecto habitual em suas obras, a partir de um determinado instante de revelação, David Lynch arremessa seus personagens num vácuo de espaço e tempo, preenchido por imagens que podem ser memória, alucinação e realidade. Não é fundamental que se compreenda os enigmas aparentemente insolúveis que ele apresenta em seus filmes, pois isso não é necessário para que se aprecie seu domínio prodigioso da técnica cinematográfica.

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