terça-feira, 8 de outubro de 2024

Ajuste Final


 Em seus primeiros projetos cinematográficos, os Irmãos Coen, Joel e Ethan, procuraram visitar distintos gêneros de cinema, a fim de testar suas aptidões e encontrar sua própria voz autoral dentro de expedientes já estabelecidos. É por isso que, em sua primeira fase, fomos brindados com obras como “Gosto de Sangue” (um neo-noir), “Arizona Nunca Mais” (comédia screwball) e “Barton Fink-Delírios de Hollywood” (drama de metalinguagem). À eles, soma-se este “Miller’s Crossing” com o qual os Coen levam um viés inusitado ao filme de gangster.

Ambientado numa cidade norte-americana indefinida (ainda que tenha sido filmado em Nova Orleans), e situado no ano de 1929 (o auge da Lei Seca), “Miller’s Crossing” possui um prólogo que parece um piscadela à “O Poderoso Chefão”, a referência-mor do gênero: Diante da câmera, um descendente de italianos (tal e qual no filme de Coppola) faz um monólogo quase que para a plateia –e para o poderoso ‘chefão’ deste filme, o irlandês Leo O’Bannon, vivido com ar supino por Albert Finney. O descendente de italianos, contudo, é outro gangster, Johnny Casper (Jon Polito, de “A Conquista da Honra”), e ele esboça seu descontentamento com um certo Bernie Bernbaum, um bookmaker clandestino que, apesar de sua insignificância, está incomodando a harmonia de seu negócio de apostas ilegais.

Casper quer Bernie morto. Leo recusa seu pedido. E está, assim, declarada a guerra.

Ouvindo tudo, está Tom Reagan (Gabriel Byrne), braço-direito de Leo e seu melhor amigo, o único aparentemente capaz de expor opiniões discordantes ao irascível Leo. Tom sabe que, ao negar um pedido relativamente sensato à Casper, Leo está pondo a paz de seu império mafioso à perder, mas, Leo se mantém irredutível e a resposta para isso não tarda à vir: Leo está enamorado  da charmosa vigarista Verna Bernbaum (Marcia Gay Harden, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “Pollock”) que vem a ser irmã de Bernie Bernbaum (John Turturro). A pedido de Verna, portanto, Bernie goza da proteção indireta de Leo, e seus deslizes constantes, fonte de irritação de Casper, recebem vista-grossa do chefão. Tom, entretanto, sabe que essa paixonite de Leo pode levar à sua derrocada –e, para complicar ainda mais as coisas, Tom e Verna são amantes às escondidas de Leo (!),

Não obstante o requinte cinematográfica que pontua este filme –enfatizado na brilhante fotografia de Barry Sonnenfeld e na música climática, operística e lírica de Carter Burwell –a trama extremamente complexada e intrincada, abarrotada de informações ambíguas, traições, reviravoltas e alianças forjadas de última hora, é contada mesmo através de diálogos carregados de melindres entre os personagens. Nessa circunstância adornada de perfídia, não chega a ser inesperado quando, ao descobrir a traição do melhor amigo, Leo rompe com Tom e este passar para o lado de Casper –a fim de provar sua lealdade ao novo chefe, contudo, Tom é obrigado por seus capangas à levar o incauto Bernie para a floresta de Miller’s Crossing, local onde, pelo jeito, os mafiosos têm o hábito de levar para sacrificar suas incontáveis vítimas.

Amparados em seus valores cinematográficos à toda prova, os Coen dão uma grande contribuição ao conceito narrativo –difundido pela obra-prima de Francis Ford Coppola –no qual as intrigas e tramóias mafiosas, desenroladas num novelo elaborado de mortes e conchavos, ganham uma carregada aura de tragédia e ópera; exemplo disso, entre outras passagens tornadas memoráveis, é o ataque à mansão de Leo, cujo tratamento bastante estilizado e poético deixa um tanto quanto de lado as pretensões de realismo para ressaltar o ambiente em suas minúcias pictórias, como se todos os locais (a mansão, o escritório de Leo, o quarto de Tom, o Clube Shenandoah –olha a referência! –e a própria Miller’s Crossing) fossem palco dos desdobramentos irônicos de uma mitologia muito particular.

Essas considerações, envoltas numa rigidez acadêmica tanto técnica quanto artística, somadas ao inerente humor negro dos Coen, tornam pouco convincentes (ainda que sempre intrigantes) muitos dos desenlaces da trama –um pequenino lapso que, na maioria de seus excelentes trabalhos, os Coen souberam habilmente contornar.

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