sábado, 12 de outubro de 2024

A Convenção das Bruxas


 Há uma característica desigual que se imprime em todos os trabalhos do diretor britânico Nicolas Roeg –um elemento peculiar onde o mundo e o ser humano, por meio do prisma sempre diferenciado de seu cinema, são expostos num viés que agrega fatalismo, minúcia e uma compreensão circunspecta do tempo e espaço que se ocupa. Interessa ao diretor Roeg explorar a condição humana, sua finitude e insuficiência diante do registro macro de seus contextos. E Roeg não abriu mão dessa concepção inclemente nem mesmo quando realizou, em 1989, uma produção infantil –ou, pelo menos, esse talvez fosse inicialmente o plano dos produtores...

Único trabalho de Nicolas Roeg dentro dessa categoria infanto-juvenil, “A Convenção das Bruxas”, adaptado do livro de Roald Dahl, como todo o bom cult-movie, não fez muito sucesso de bilheteria em sua época, e foi alvo inevitável da incompreensão de muitos críticos que apontaram não só sua indefinição de público-alvo (uma obra que revelava-se demasiada pueril para os adultos, e demasiada tétrica para as crianças) como também a incapacidade do próprio estúdio em saber do que se tratava, afinal, o projeto na hora de executar seu trabalho de divulgação.

Na Noruega, o garotinho Luke (Jasen Fisher, de “O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra”), na companhia da carinhosa avó (a ótima Mae Zetterling) toma conhecimento de histórias secretas a respeito de bruxas que vivem entre os seres humanos comuns, e podem ser detectadas por seu hábito crônico de coçar a cabeça (todas são carecas e, por isso, ao disfarçarem-se, usam perucas que lhes incomodam), por seus olhos perversos de incomum brilho púrpura e sua aversão ao cheiro das crianças –ainda assim, tais bruxas estão sempre à espreita, conta a avó, responsáveis por alguns dos mais cruéis casos de desaparecimento que se ouviu falar. A própria avó de Luke conta que teve, quando mais jovem, um fatídico encontro com uma bruxa –de onde teve um de seus dedos da mão mutilados! –embora nunca tenha conseguido encontrar a lendária, terrível e poderosa Bruxa-Mestra.

Quando o pai e a mãe de Luke morrem num acidente, ele e a avó vão para a Inglaterra e, antes de seu retorno aos EUA, fazem uma parada num hotel de luxo à beira-mar. O mesmo hotel que, logo depois se descobre, está abrigando uma convenção de bruxas do mundo todo, na qual a participante principal, a própria Bruxa-Mestra (vivida com segurança intimidadora por Anjelica Huston), revela um plano de transformar todas as crianças em ratos através de uma poção de efeito rápido que todas haverão de receber. Ao bisbilhotar furtivamente e descobrir sem querer esse plano, Luke é descoberto e, vítima da poção, transformado num rato, junto do bonachão amiguinho Bruno (Charlie Potter). Os dois, agora convertidos nos diminutos animais (e alvo da ira do gerente do hotel, interpretado por um Rowan Atkinson pré-Mr, Bean!), precisam encontrar a avó de Luke e alertá-la do plano maquiavélico, a fim de neutralizá-lo enquanto todas as bruxas, incluindo a perigosíssima Bruxa-Mestra, ainda se encontram nas dependências do hotel.

Assinada pelo mago dos bonecos animatrônicos Jim Henson (dono da Creature Shops, empresa responsável pelos bonecos que se vê no filme), a produção mostra seu mais impressionante aparato técnico justamente nas cenas em que Luke e Bruno tão transformados em ratos –os efeitos práticos dos garotos convertidos em ratos são absolutamente brilhantes e, em momento algum, deixam a desejar nas complexas sequências em que os ratinhos precisam desvencilhar-se das dimensões agigantadas do hotel para executar suas tarefas, sejam nos corredores (com os hóspedes andando pra lá e pra cá, e todos os empecilhos físicos da elaborada cenografia), sejam dentro dos quartos (entre eles, a cena em que invadem os aposentos da Bruxa-Mestra à procura da poção escondida), ou na cozinha (uma das sequências-clímax onde os trechos ganham notável execução até pela complexidade caótica dos elementos). Entretanto, é na direção de Nicolas Roeg que, de fato, se encontra o diferencial deste trabalho: Ao moldar um obra infantil que, ao mesmo tempo, não subestima a capacidade das crianças de absorver algum suspense em sua narrativa, o realizador de “Walkabout-A Longa Caminhada” entrega uma arrepiante e sensacional fantasia de terror psicológico juvenil, incomum até mesmo para os anos 1980 à que pertence.

Em 2020, o diretor Robert Zemeckis tentou refilmar “A Convenção das Bruxas” munido do repertório de efeitos digitais da atualidade e trazendo inclusive Anne Hathaway para o papel de Bruxa-Mestra. Um tremendo equívoco: Como outras narrativas singulares da década de 1980, “A Convenção das Bruxas”, junto da percepção bastante única do diretor Nicolas Roeg, tinha –com o perdão do trocadilho –uma ‘magia’ que dificilmente seria repetida numa produção de estúdio.

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