sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Walkabout - A Longa Caminhada

 


O filme de Nicolas Roeg (o segundo que ele dirigiu, e o primeiro sem colaboração já que a direção de “Performance” ele dividia com Donald Cammell) já inicia sua narrativa informando ao público o significado da palavra “walkabout” –um período no qual um jovem aborígene, ao atingir certa idade, deve passar alguns meses imersão na vastidão selvagem da Austrália, e dela sobreviver.

Demora um pouco a ficar claro, mas na verdade, embora não faça parte de sua tradição, a trajetória vivida pela jovem interpretada por Jenny Agutter e por seu irmão pequeno, interpretado por Luc Roeg (filho de Nicolas) é, pois, um ‘walkabout’; deles, e não do garoto aborígene com o qual se encontram; até porque dele muito pouco sabemos para tecer qualquer certeza.

A trama, sobre seres civilizados desafiados por uma circunstância que os coloca longe da civilização, é concebida por Nicolas Roeg numa percepção abstrata dos eventos –e na observação plenamente metafórica da ausência de tópicos esboçados nesse trajeto –um contraponto poético e enigmático de tradições e contradições, de identidades existenciais em oposição às identidades pessoais.

O início, ainda na civilização, capta sons estranhos e sintetizados, ausentes de conforto, despidos de qualquer normalidade –é Nicolas Roeg já levando o expectador a uma impressão de afastamento das condições urbanas. As cenas que capturam as rotinas da adolescente e do garotinho são impessoais, sem diálogos, quase dispersas. Logo, numa transição visual de texturas que sobrepõem a cidade ao ambiente selvagem, encontramos eles dentro de um carro, junto de seu pai no deserto. Acometido de algum tipo de angústia que jamais compreendemos, ele parece tentar matar as crianças com um revólver. Eles fogem. Na sequência, o pai coloca fogo no carro e se suicida.

E com isso, a garota e o menininho se veem perdidos em seu ‘walkabout’ involuntário, sem a presença de adultos, sem ideia de para onde ir e o que fazer. E nesse estado de espírito, eles transcorrem por toda a primeira parte do filme, aleatoriamente pelo deserto, a sentir na pele os efeitos de uma privação que jamais imaginariam existir: Lábios ressecados pelo sol, sede extrema, cansaço, desorientação, completa falta de conhecimento dos fenômenos naturais.

Eles encontram uma árvore com frutos, ao pé dos quais um pequeno lago de água doce atrai a curiosa fauna regional –são constantes as inserções de trechos documentais com imagens de cobras, lagartos, aranhas, escorpiões, cangurus e toda vasta vida animal australiana. No dia seguinte, contudo, a fonte já está completamente seca e a árvore, graças à avidez dos pássaros já não tem mais fruto nenhum.

Nesse momento, eles encontram o jovem aborígene que será um companheiro durante todo o resto de sua jornada –interpretado por David Gulpilil, ator que especializou-se em vivenciar nativos australianos nas telas de cinema em produções diversas como “Crocodilo Dundee”, “Geração Roubada” e “A Proposta” –eles não conseguem se comunicar, nem tampouco contar os nomes uns para os outros; mas, ainda assim, o jovem nativo os conduz pelo deserto, suprindo sua sede, contornando a inexperiência deles em suportar a vida selvagem e fornecendo um alento mais, digamos, existencial: Um amigo para o garotinho quando ele assim precisa, uma presença que oferece segurança (e, queira ou não, uma certa masculinidade) à jovem, exausta por ter de tomar as rédeas da situação diante do papel de irmã mais velha. É palpável o fascínio que toda essa dinâmica exerce na direção de Roeg.

Em algum momento, o filme introduz novos personagens. Ganchos narrativos que fazem o expectador presumir que levarão a algum lugar, embora não levem a lugar nenhum... –uma tribo de aborígenes encontrando o carro incendiado e o cadáver do pai suicida; um grupo de nativos a preparar artefatos para possivelmente comercializar aos turistas; cientistas no deserto às voltas com balões meteorológicos que não funcionam à contento; caçadores aleatórios, indiferentes e arrogantes.

São escolhas que agregam certa confusão ao expectador –afinal, se o objetivo dos jovens é regressar à civilização, por que encontros iminentes com outras pessoas são desprezados em diversos momentos? São escolhas que levam a uma variedade de conexões de tempo que fazem o estilo de Nicolas Roeg e terminam consolidando o elemento profundamente instigante que habita sua parte final: Diante da crueldade do homem moderno para com a natureza e da incapacidade de conectar-se com aquela bela jovem –saída, ela mesma, dessa civilização –o garoto aborígene, como o pai deles no início, suicida-se, encerrando num formato cíclico a trajetória deles.

Há uma outra cena, já na cidade, em que percebemos a jovem então a viver uma rotina de dona de casa exatamente similar à de sua mãe no começo: Há, porém, uma imagem que a assombra. Ela e seu irmão, juntos do amigo aborígene, nus em meio à natureza selvagem, numa comunhão perfeita, harmoniosa e singela.

O desfecho que poderia ter sido, mas não foi...

Dotado de associações vastas entre seus temas, seus significados e suas potencialidades reflexivas, “Walkabout” foi um poderoso indício do gênio cinematográfico incomum que Nicolas Roeg se tornaria em ousados projetos futuros. Foi também um merecido cult-movie aclamado dos anos 1970, exemplar relevante do chamado Ozploitation –produções de natureza peculiar oriundas da Austrália –e, por isso mesmo, é visto pela crítica até hoje como uma obra capaz de reproduzir uma rara sensação latente do subconsciente daquele país: O de não compreender integralmente os desdobramentos espirituais do lugar a que se pertence.

Nenhum comentário:

Postar um comentário