O filme de Nicolas Roeg (o segundo que ele dirigiu, e o primeiro sem colaboração já que a direção de “Performance” ele dividia com Donald Cammell) já inicia sua narrativa informando ao público o significado da palavra “walkabout” –um período no qual um jovem aborígene, ao atingir certa idade, deve passar alguns meses imersão na vastidão selvagem da Austrália, e dela sobreviver.
Demora um pouco a ficar claro, mas na verdade,
embora não faça parte de sua tradição, a trajetória vivida pela jovem
interpretada por Jenny Agutter e por seu irmão pequeno, interpretado por Luc
Roeg (filho de Nicolas) é, pois, um ‘walkabout’; deles, e não do garoto
aborígene com o qual se encontram; até porque dele muito pouco sabemos para
tecer qualquer certeza.
A trama, sobre seres civilizados desafiados por
uma circunstância que os coloca longe da civilização, é concebida por Nicolas
Roeg numa percepção abstrata dos eventos –e na observação plenamente metafórica
da ausência de tópicos esboçados nesse trajeto –um contraponto poético e
enigmático de tradições e contradições, de identidades existenciais em oposição
às identidades pessoais.
O início, ainda na civilização, capta sons
estranhos e sintetizados, ausentes de conforto, despidos de qualquer
normalidade –é Nicolas Roeg já levando o expectador a uma impressão de
afastamento das condições urbanas. As cenas que capturam as rotinas da
adolescente e do garotinho são impessoais, sem diálogos, quase dispersas. Logo,
numa transição visual de texturas que sobrepõem a cidade ao ambiente selvagem,
encontramos eles dentro de um carro, junto de seu pai no deserto. Acometido de
algum tipo de angústia que jamais compreendemos, ele parece tentar matar as
crianças com um revólver. Eles fogem. Na sequência, o pai coloca fogo no carro
e se suicida.
E com isso, a garota e o menininho se veem
perdidos em seu ‘walkabout’ involuntário, sem a presença de adultos, sem ideia
de para onde ir e o que fazer. E nesse estado de espírito, eles transcorrem por
toda a primeira parte do filme, aleatoriamente pelo deserto, a sentir na pele
os efeitos de uma privação que jamais imaginariam existir: Lábios ressecados
pelo sol, sede extrema, cansaço, desorientação, completa falta de conhecimento
dos fenômenos naturais.
Eles encontram uma árvore com frutos, ao pé dos
quais um pequeno lago de água doce atrai a curiosa fauna regional –são
constantes as inserções de trechos documentais com imagens de cobras, lagartos,
aranhas, escorpiões, cangurus e toda vasta vida animal australiana. No dia
seguinte, contudo, a fonte já está completamente seca e a árvore, graças à
avidez dos pássaros já não tem mais fruto nenhum.
Nesse momento, eles encontram o jovem aborígene
que será um companheiro durante todo o resto de sua jornada –interpretado por
David Gulpilil, ator que especializou-se em vivenciar nativos australianos nas
telas de cinema em produções diversas como “Crocodilo Dundee”, “Geração Roubada” e “A Proposta” –eles não conseguem se comunicar, nem tampouco contar
os nomes uns para os outros; mas, ainda assim, o jovem nativo os conduz pelo
deserto, suprindo sua sede, contornando a inexperiência deles em suportar a
vida selvagem e fornecendo um alento mais, digamos, existencial: Um amigo para
o garotinho quando ele assim precisa, uma presença que oferece segurança (e,
queira ou não, uma certa masculinidade) à jovem, exausta por ter de tomar as
rédeas da situação diante do papel de irmã mais velha. É palpável o fascínio
que toda essa dinâmica exerce na direção de Roeg.
Em algum momento, o filme introduz novos
personagens. Ganchos narrativos que fazem o expectador presumir que levarão a
algum lugar, embora não levem a lugar nenhum... –uma tribo de aborígenes
encontrando o carro incendiado e o cadáver do pai suicida; um grupo de nativos
a preparar artefatos para possivelmente comercializar aos turistas; cientistas
no deserto às voltas com balões meteorológicos que não funcionam à contento;
caçadores aleatórios, indiferentes e arrogantes.
São escolhas que agregam certa confusão ao
expectador –afinal, se o objetivo dos jovens é regressar à civilização, por que
encontros iminentes com outras pessoas são desprezados em diversos momentos?
São escolhas que levam a uma variedade de conexões de tempo que fazem o estilo
de Nicolas Roeg e terminam consolidando o elemento profundamente instigante que
habita sua parte final: Diante da crueldade do homem moderno para com a
natureza e da incapacidade de conectar-se com aquela bela jovem –saída, ela mesma,
dessa civilização –o garoto aborígene, como o pai deles no início, suicida-se,
encerrando num formato cíclico a trajetória deles.
Há uma outra cena, já na cidade, em que
percebemos a jovem então a viver uma rotina de dona de casa exatamente similar
à de sua mãe no começo: Há, porém, uma imagem que a assombra. Ela e seu irmão,
juntos do amigo aborígene, nus em meio à natureza selvagem, numa comunhão
perfeita, harmoniosa e singela.
O desfecho que poderia ter sido, mas não foi...
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