segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A Fuga


 Em seu livro “Especulações Cinematográficas”, Quentin Tarantino dedica um capítulo inteiro a falar de “Os Implacáveis”, dirigido por Sam Peckinpah, estrelado por Steve McQueen e Ali MacGraw, adaptado de um livro de Jim Thompson, roteirizado por Walter Hill e lançado em 1972. O mesmo filme –talvez, o último grande filme da carreira do astro McQueen –foi refilmado, nos anos 1990, neste “A Fuga” –cujo o título original é o mesmo, “The Getaway”. E talvez seja mesmo imprescindível tecer esse comentário: “A Fuga” é daquelas produções que se mostra muito mais baseada no filme anterior que adaptou a obra do que na própria obra adaptada.

Não à toa, o roteirista aqui é novamente Walter Hill (em colaboração com Amy Jones) que, na segunda metade da década de 1970 e ao longo de toda década de 1980, sagrou-se como um diretor especializado na ênfase da masculinidade e da violência, ambos elementos em constante conjugação; mais ou menos como um pupilo de Sam Peckinpah. Já o diretor deste novo “The Getaway” vem a ser Roger Donaldson (de "Sem Saída") cujo estilo característico, tão charmoso quanto presunçoso, adorna com elementos típicos dos anos 1990, a trama de tormento romântico e perseguição que se desenrola, com algumas referências, sobretudo, na primeira parte, ao requintado cinema policial de Michael Mann, especialmente o clássico “Profissão: Ladrão”.

Carter ‘Doc’ McCoy (Alec Baldwin) e Carol (Kim Basinger) são casados e apaixonados; mais que isso, são frequentemente cúmplices nas investidas criminais que executam. Uma delas (o resgate das mãos de policiais do sobrinho de um chefão fora-da-lei) dá errado: Com isso, graças à traição do muy amigo Rudy Travis (Michael Madsen), Doc amarga pouco mais de um ano atrás das grades de uma penitenciária no México. Para salvá-lo, a esposa, Carol, negocia com o empresário inescrupuloso Jack Benyon (James Woods, todo serelepe numa ponta especial) a libertação de Doc e, com isso, sua participação num grande roubo. As coisas começam a se complicar quando Doc e Carol devem aceitar como companheiros nesse roubo –basicamente, uma invasão explosiva e perigosa numa casa de apostas de corrida de cachorros –o instável Frank Hansen (Philip Seymour Hoffman, ainda bem jovem) e, mais uma vez, o traiçoeiro Rudy.

O assalto se sucede sem maiores atropelos, entretanto, tão logo os três saem com a generosa quantia de dinheiro roubado em mãos, as traições de costume começam a se suceder: Rudy fulmina Hansen à tiros e, ao tentar fazer o mesmo com Doc no ponto de encontro, é alvejado e largado ao léu no leito de um rio. Já, Benyon imaginava outra coisa: Tendo negociado com Carol a liberdade de Doc em troca de favores sexuais (e revelado isso à Doc em cima da hora), Benyon esperava que Carol traísse seu parceiro e se juntasse a ele, mas, Carol descarrega sua arma no próprio Benyon e agora, o casal fica com mais um cadáver nas mãos.

Doc e Carol têm assim, uma mala de dinheiro consigo, porém, as autoridades, os homens de Benyon (chefiados por um sibilante David Morse) e o próprio Rudy (que sobreviveu aos tiros!) para caçá-los até chegarem à fronteira do México, onde os documentos falsos de praxe possibilitarão que desapareçam do mapa. A situação, no entanto, se revela ainda mais complicada com o fato de que, agora, com as novas revelações acerca de toda a real dimensão do trato feito com Benyon, Doc e Carol não mais confiam um no outro como antes.

Ao conferir as considerações de Tarantino acerca de “Os Implacáveis”, podemos entender algumas das escolhas tomadas aqui neste filme. Em primeiro lugar, as escolhas para os antagonistas: Se no filme de 72, Benyon era vivido por um ligeiramente inadequado Ben Jonhson (velho demais e sexualmente apático demais para o papel), nesta versão, Benyon tem a maldade libidinosa de James Woods (sem dúvidas, um acerto), enquanto que em 72, tínhamos o contido e truculento Al Lettieri para o papel de Rudy, aqui temos, o nada contido e ainda mais truculento Michael Madsen, dando toda a dimensão psicopata e imprevisível que ficou faltando em Rudy no filme anterior, durante sua sórdida sub-trama na qual empreende uma perseguição ao casal Doc/Carol levando como reféns, o desafortunado veterinário Harold (James Stephens) e sua espevitada esposa Fran (Jennifer Tilly), cuja Síndrome de Estocolmo logo a leva a tornar-se amante de Rudy (!?).

Já os protagonistas de “The Getaway” são um caso curioso –e sobre muitos aspectos até de apelo junto ao público, a grande razão de ser do projeto: Casados na vida real, Kim Basinger (assombrosamente linda, e no auge de seu status de sex-simbol máximo no cinema de então) e Alec Baldwin estrelam a obra em circunstâncias até bem parecidas com as quais o público se acostumou a ver Ali MacGraw e Steve McQueen no “The Getaway” dos anos 1970 –foi durante essas filmagens, que McQueen (divorciado à pouco tempo) engatou um romance com MacGraw (então casada com o produtor Robert Evans).

Dito isso, não são as cenas de ação (executadas com minúcia e precisão técnica o suficiente para não fazer feio ante a comparação com Peckinpah) nem a trama frenética e palpitante em torno da perseguição (bem equacionada entre as manobras de roteiro e a criteriosa montagem) que representam o maior atrativo desta produção na época em que foi lançada (meados de 1994) e agora: São as tórridas cenas de sexo entre o casal Alec Baldwin/Kim Basinger (cuja primeira colaboração juntos foi a comédia “Uma Loira Em Minha Vida”). Na verdade, essas cenas por pouco não tiraram completamente a atenção sobre todo o restante do filme –não apenas pelo irresistível apelo (em plenos anos 90, época do sexploitation chic, as produções erotizadas como “Instinto Selvagem”) da nudez em cena de uma estrela como Kim Basinger, como também pela ousadia até hoje flagrante de tais sequências –ainda é possível observar nessas cenas indícios, que repercutiram desde o começo, nos quais o casal principal pode ter chegado às vias de fato durante as filmagens (!).

Portanto, “A Fuga”, embora tenha predicados técnicos e artísticos de cinema (tímidos, no fim das contas), deixa esses tais aspectos de lado, que fizeram de “Os Implacáveis” o filme sensacional de ação que ele é, para abraçar considerações mercadológicas (e, hoje, estranhas) bem particulares de sua época.

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