Nunca esteve nos planos de ninguém que o clássico “Uma Linda Mulher” fosse um filme realista; nem nos planos do falecido diretor Garry Marshall (que ao longo da carreira especializou-se em comédias românticas ingênuas e açucaradas), e muito menos nos planos da produtora Touchstone Pictures, subsidiária da Disney. O enredo de “Uma Linda Mulher”, para quem não sabe, gira em torno de um milionário bonitão e disponível que paga uma prostituta do Hollywood Boulevard para o acompanhar por uma semana e, durante esse tempo, a moça lhe conquista o coração, provando que é sua alma gêmea e que foram feitos um para o outro.
Existe até um certo esforço, na direção de
Marshall em conceber um filme que pareça, em princípio, adulto, com toques
realistas, dramaticamente convincente e tudo o mais; no entanto, basta um pouco
de sensatez no expectador para perceber que, apesar da traquinagem em querer
retratar superficialmente a prostituição de Los Angeles, o filme é tão somente
um conto de fadas. E não há nada de mal nisso: “Uma Linda Mulher” é um filme
agradável, deu uma indicação ao Oscar para sua protagonista, Julia Roberts, e
para o público a que se dirige, funciona à perfeição.
Não deixa de haver também uma dose de
traquinagem no diretor e roteirista Sean Baker (de “Projeto Flórida”) quando
ele realiza, com o premiado “Anora” (vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2024),
uma versão verdadeiramente realista, ácida, adulta e, no fim das contas,
igualmente engraçada e apaixonante, de “Uma Linda Mulher”.
Anora, ou Ani (a sensacional Mikey Madison, de “Era Uma Vez Em Hollywood”), trabalha numa boate do Brooklyn como prostituta fazendo
pole dancer e servindo de
acompanhante. Ele e suas amigas e/ou rivais pescam clientes no bar e os
convencem a irem aos quartos privados para uma dança particular –as garotas
ficam completamente nuas se gostarem demais do cliente ou se as pagarem muito
bem. Numa dessas noites corriqueiras, Ani conhece o jovem e tresloucado Ivan
(Mark Eidelshtein) que logo a chama para um programa mais particular, em sua
impressionante mansão à beira do Hudson. Os percalços sub-sequentes desse
‘romance’ são mostrados pelo diretor Baker numa turbilhão divertido e
incessante: Ani o satisfaz plenamente; ele a convida para uma festa, onde os
dois terminam, mais uma vez, na cama; até que então, Ivan propõe a ela que o
acompanhe, mediante pagamento, por uma semana –até mesmo um diálogo,
referencial à “Uma Linda Mulher” é espertamente acrescentado à cena pelo
diretor e roteirista Baker.
Ao longo de uma semana de muita diversão,
bebedeira e farra, Ivan –que é, diga-se, herdeiro de um rico casal de oligarcas
russos –se sente tão à vontade com a companhia de Ani que, durante uma breve
viagem festiva à Las Vegas, pede ela em casamento. Ainda que inicialmente
incrédula com a possibilidade de uma mudança de vida tão súbita, inacreditável
e afortunada, Ani aceita, e os dois se casam.
Entretanto, como reza a cartilha mais da
realidade que da ficção –Quando a esmola é demais, o santo desconfia: Tão logo
a notícia de que Ivan se casou se espalha, os pais dele, lá da Rússia, acionam
homens de confiança na esperança de por as coisas em seus devidos lugares. Eles
chamam Toros (Karren Karagulian), uma espécie de homem de confiança da família,
e junto com ele, seus capangas, o irmão de Toros, Garnick (Vache Tovmasyan), e o
novato Igor (Yuriy Borisov), que logo aportam na mansão em Nova York para saber
o que está acontecendo.
E está assim armada a confusão –ao contrário de
Garry Marshall, não é do interesse de Sean Baker moldar uma comédia romântica,
ou mesmo algo próximo de uma história de amor. Calcado num realismo e numa crítica social que ele
herdou de suas raízes no cinema independente norte-americano, Baker constrói um
filme magnificamente envolvente, saboroso, engraçado e, no fim das contas,
tenso com as situações que vão se somam num registro ligeiramente diferente do
visto na primeira parte. Se antes, a narrativa se ocupava da trajetória
superficial, banal até, de um relacionamento jovem em gestação –com todos os
seus estágios de êxtase, consumo de drogas e baladas, a tornar tudo elíptico –a
partir da metade, “Anora” concentra-se num andar mais desacelerado de seu plot, ciente de que chegou na parte
realmente original da coisa: Imaturo, como ficou claro desde o começo, Ivan
foge da mansão para não encarar a realidade (seus pais estão vindo da Rússia
para lhe dar um corretivo) deixando Ani com um abacaxi nas mãos. Ela precisa
lidar com Toros (hilário em sua perplexidade) com Garnick (mais perdido que
cego em tiroteio) e com as tentativas sempre repelidas do pobre Igor em ser
amigável. Num dado momento, toda essa trupe entra num carro e sai por Nova York
à procura de Ivan –e as novas confusões que se seguem transformando “Anora” no
filme mais hilariante de 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário