terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Anora


 Nunca esteve nos planos de ninguém que o clássico “Uma Linda Mulher” fosse um filme realista; nem nos planos do falecido diretor Garry Marshall (que ao longo da carreira especializou-se em comédias românticas ingênuas e açucaradas), e muito menos nos planos da produtora Touchstone Pictures, subsidiária da Disney. O enredo de “Uma Linda Mulher”, para quem não sabe, gira em torno de um milionário bonitão e disponível que paga uma prostituta do Hollywood Boulevard para o acompanhar por uma semana e, durante esse tempo, a moça lhe conquista o coração, provando que é sua alma gêmea e que foram feitos um para o outro.

Existe até um certo esforço, na direção de Marshall em conceber um filme que pareça, em princípio, adulto, com toques realistas, dramaticamente convincente e tudo o mais; no entanto, basta um pouco de sensatez no expectador para perceber que, apesar da traquinagem em querer retratar superficialmente a prostituição de Los Angeles, o filme é tão somente um conto de fadas. E não há nada de mal nisso: “Uma Linda Mulher” é um filme agradável, deu uma indicação ao Oscar para sua protagonista, Julia Roberts, e para o público a que se dirige, funciona à perfeição.

Não deixa de haver também uma dose de traquinagem no diretor e roteirista Sean Baker (de “Projeto Flórida”) quando ele realiza, com o premiado “Anora” (vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2024), uma versão verdadeiramente realista, ácida, adulta e, no fim das contas, igualmente engraçada e apaixonante, de “Uma Linda Mulher”.

Anora, ou Ani (a sensacional Mikey Madison, de “Era Uma Vez Em Hollywood”), trabalha numa boate do Brooklyn como prostituta fazendo pole dancer e servindo de acompanhante. Ele e suas amigas e/ou rivais pescam clientes no bar e os convencem a irem aos quartos privados para uma dança particular –as garotas ficam completamente nuas se gostarem demais do cliente ou se as pagarem muito bem. Numa dessas noites corriqueiras, Ani conhece o jovem e tresloucado Ivan (Mark Eidelshtein) que logo a chama para um programa mais particular, em sua impressionante mansão à beira do Hudson. Os percalços sub-sequentes desse ‘romance’ são mostrados pelo diretor Baker numa turbilhão divertido e incessante: Ani o satisfaz plenamente; ele a convida para uma festa, onde os dois terminam, mais uma vez, na cama; até que então, Ivan propõe a ela que o acompanhe, mediante pagamento, por uma semana –até mesmo um diálogo, referencial à “Uma Linda Mulher” é espertamente acrescentado à cena pelo diretor e roteirista Baker.

Ao longo de uma semana de muita diversão, bebedeira e farra, Ivan –que é, diga-se, herdeiro de um rico casal de oligarcas russos –se sente tão à vontade com a companhia de Ani que, durante uma breve viagem festiva à Las Vegas, pede ela em casamento. Ainda que inicialmente incrédula com a possibilidade de uma mudança de vida tão súbita, inacreditável e afortunada, Ani aceita, e os dois se casam.

Entretanto, como reza a cartilha mais da realidade que da ficção –Quando a esmola é demais, o santo desconfia: Tão logo a notícia de que Ivan se casou se espalha, os pais dele, lá da Rússia, acionam homens de confiança na esperança de por as coisas em seus devidos lugares. Eles chamam Toros (Karren Karagulian), uma espécie de homem de confiança da família, e junto com ele, seus capangas, o irmão de Toros, Garnick (Vache Tovmasyan), e o novato Igor (Yuriy Borisov), que logo aportam na mansão em Nova York para saber o que está acontecendo.

E está assim armada a confusão –ao contrário de Garry Marshall, não é do interesse de Sean Baker moldar uma comédia romântica, ou mesmo algo próximo de uma história de amor. Calcado num realismo e numa crítica social que ele herdou de suas raízes no cinema independente norte-americano, Baker constrói um filme magnificamente envolvente, saboroso, engraçado e, no fim das contas, tenso com as situações que vão se somam num registro ligeiramente diferente do visto na primeira parte. Se antes, a narrativa se ocupava da trajetória superficial, banal até, de um relacionamento jovem em gestação –com todos os seus estágios de êxtase, consumo de drogas e baladas, a tornar tudo elíptico –a partir da metade, “Anora” concentra-se num andar mais desacelerado de seu plot, ciente de que chegou na parte realmente original da coisa: Imaturo, como ficou claro desde o começo, Ivan foge da mansão para não encarar a realidade (seus pais estão vindo da Rússia para lhe dar um corretivo) deixando Ani com um abacaxi nas mãos. Ela precisa lidar com Toros (hilário em sua perplexidade) com Garnick (mais perdido que cego em tiroteio) e com as tentativas sempre repelidas do pobre Igor em ser amigável. Num dado momento, toda essa trupe entra num carro e sai por Nova York à procura de Ivan –e as novas confusões que se seguem transformando “Anora” no filme mais hilariante de 2024.

Merecidamente aclamado por público e crítica, “Anora” é tão bom que chega a despertar um sentimento de desconfiança no expectador –como um filme tão satisfatório (o arco dramático e narrativo de Anora, enquanto protagonista é de uma perfeição só), tão preciso em termos de humor e condução (os personagens como um todo são brilhantemente planejados, construídos e interpretados, com destaque para a protagonista Mikey Madison, absolutamente formidável), tão incrivelmente certeiro na diversão que se propõe conseguiu agradar aos críticos, normalmente tão sisudos, do Festival de Cannes?

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