sábado, 18 de janeiro de 2025

O Homem Elefante


 Quando em 1981 o produtor Mel Brooks escolheu David Lynch para dirigir sua acalentada produção “The Elephant Man”, sobre a história real de John Merrick, portador de uma rara deformidade que o tornou vítima de toda sorte de preconceito e compaixão durante a Inglaterra vitoriana, ele tinha, quando muito, o experimental “Eraserhead” como referência desse jovem diretor –Brooks não tinha como saber o quando a personalidade singular e o talento inigualável para moldar inquietações da mente humana fariam de Lynch um nome quintessencial para esse estilo surrealista muito específico que ele discorreu em obras marcantes no cinema e na TV –e que, por vezes, ele seria um dos poucos capazes de dominar com brilhantismo tal linguagem.

É natural, portanto, que “O Homem Elefante” mantenha certa distância das obras bem mais pessoais que David Lynch veio a entregar depois –tal e qual o próprio “Duna”, que Lynch dirigiu na sequência, três anos depois, “O Homem Elefante” é uma obra de encomenda para um estúdio (essa característica se reflete no fato de ser um filme de época e, por consequência, ostentar uma caprichadíssima reconstituição) e, com isso, espelha não só as ideias de seu diretor, mas também as de seu produtor e, não duvido, de todo um comitê executivo por trás do projeto. Ainda assim, David Lynch foi capaz de trazer um braço artístico para aquele corpo comercial, como também preservou nele elementos simbólicos de seu cinema, como o apreço por filmes obscuros de terror (a fotografia em preto & branco, que remete às produções antigas do gênero e ao expressionismo alemão, é de um atrevimento estético notável para aqueles coloridos anos 1980 de então).

A trama acompanha o cirurgião Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins, pouco mais de uma década antes da consagração como Hannibal Lecter) que, numa visita a uma exibição circense, descobre a existência de John Merrick (John Hurt, absolutamente surpreendente numa atuação que conjuga expressões faciais, gestos e uma pesada maquiagem), um homem apresentado ao público pagante como uma aberração exótica. Compadecido com Merrick e curioso para com sua condição –ele acredita que sua deformidade tem origem numa misteriosa doença, e intenciona estudá-lo –o Dr. Treves o recolhe em sua mansão, onde visa proporcionar a Merrick a chance de aprender, a almejar dignidade e obter a improvável aceitação da puritana sociedade inglesa da época.

Entretanto, apesar dos avanços notáveis de Merrick, e da diversificada celeuma que ele desperta em acadêmicos e aristocratas, o passado ameaça retornar, na forma de um aventureiro (Freddie Jones, de “Krull” e “E La Nave Vá”) que não desiste da ideia de persegui-lo e lucrar com sua exibição nos corriqueiros shows de horrores dos subúrbios londrinos.

Avassalador sucesso de crítica na época de seu lançamento, “O Homem Elefante” foi indicado à oito Oscars na cerimônia de 1981, infelizmente não levando nenhum... a categoria de Melhor Maquiagem (a qual certamente teria arrebatado o prêmio!) só foi criada no ano seguinte, muito em função dos protestos acarretados pela produção este filme.

Como “História Real” e o já mencionado “Duna”, “O Homem Elefante” destoa ligeiramente do restante da filmografia desse incomparável David Lynch –no que ele se iguala aos seus pares, porém, também assinados por seu brilhante realizador, é no primor artístico que exala de cada um de seus fotogramas, na compreensão dramática e narrativa, espantosa, até pelo fato de sabermos ser este apenas seu segundo longa-metragem, e na forma com que, habilmente, Lynch manipula percepções e emoções construindo aqui um tratado moral sobre nossos próprios preconceitos, sobre a empatia e sobre as equivocadas definições sensoriais (partilhadas até por nós mesmos, enquanto público) numa cultura onde o belo é bom e o feio é mau.

David Lynch, que no dia 15 de janeiro de 2025 nos deixou, marcou a história do cinema como um de seus mais inestimáveis realizadores, autor de obras diversas, primorosas, inesperadas, versáteis, plenas no entendimento de uma pluralidade humana e das extensões infindas de toda nossa complexidade. Descanse em paz, mestre dos sonhos obscuros, sabendo que sua arte está imortalizada nos filmes preciosos e antológicos que seu talento reservou ao mundo.

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