Se todo o resto de “E La Nave Vá” fosse assim
redundante, ele ainda seria antológico por seu prólogo. Nele, um cais de porto
é registrado em tom sépia, preto & branco. Pessoas comuns, transeuntes e
estivadores aparecem em cena, muitas vezes surpresos pela presença do
cinegrafista. Um silêncio denso é cortado somente por um ruído a sugerir um
projetor de cinema mudo.
O que vemos não foge muito de uma das filmagens
pioneiras dos Irmãos Lumiére.
E é isso que é mesmo: No registro que adota (e
que habilmente transfigura), Federico Fellini tangencia o princípio de sua
jornada emoldurando-o com a evolução do próprio cinema; aos poucos, outros sons
vão se infiltrando na filmagem (barulhos locais, música) enquanto o sépia dá
lugar à cor; o cinema mudo vira cinema falado; o documentário vira um filme de
ficção.
E nessa ficção, o luxuoso transatlântico que
abrigará a trama do filme recebe as cinzas da famosa cantora Edmea Tetua para
seu iminente funeral em alto-mar –esse trecho de ópera, “E La Nave Vá”, dá nome
ao filme e à música que é entoada.
Negligenciando deliberadamente as formalidades
dramatúrgicas convencionais do cinema, este trabalho de Fellini é todo estilo. Uma
sucessão inspirada, espalhafatosa e surreal de cenas e situações que ilustram
minúcia, alegoria e senso onírico.
A fim de prestigiar o célebre ato fúnebre, toda
sorte da aristocracia, política e arte europeia do início do Século XX povoa o
navio, e seu protagonista, Orlando (Freddie Jones, uma rápida participação em “Coração Selvagem”), não à toa, é um jornalista que, ao quebrar a quarta parede, se
assume como os olhos da plateia (e do próprio diretor).
Desse encontro do exemplar comum (os humildes e
anônimos operários do navio) com a representação da arte (as figuras
iconoclastas e singulares que compõem os passageiros), Fellini extrai cenas
memoráveis em sua unidade: Dois aclamados músicos executam uma espécie de duelo
produzindo notas com os cristais nas taças de água da cozinha para deleite dos
funcionários; duas passageiras admiram a beleza artificial de um lindo pôr-do-sol
(que ironicamente Fellini faz ser artificial de fato); um tenor de ópera
paralisa uma galinha com o poder de sua voz; numa condescendente visita às
caldeiras, um grupo de cantores inicia uma disputa musical pelos aplausos dos
suados trabalhadores.
A obra de Fellini segue nesse viés quase
desiludido, sem um conflito que o faça tenso; sem um drama que o faça
absorvente; sem uma lógica narrativa que o faça acessível.
Afinal, a arte, Fellini compreende, tem lá esse
ônus.
É já na metade de seu segundo terço que o filme
ganha um sabor mais autêntico em seu retrato das complicações raciais,
culturais, econômicas e políticas que fragmentaram a Europa após a Primeira
Guerra Mundial, quando surgem refugiados sérvios no navio, fugitivos da
recém-declarada guerra com a Áustria.
O contraponto à nobreza fútil e hedonista e os
despossuídos da guerra vai perdendo cada vez menos seu contraste absurdista do
início para agregar um certo esforço de conciliação.
Os empuxos da guerra deflagrada no mundo
exterior ao navio chegam até seus passageiros quando todos já experimentam uma
coexistência lírica e humanista que é inerente a Fellini e a todos os seus
filmes, e ele encerra sua obra numa amarga manobra de metalinguagem –virando a
câmera, no instante de uma tragédia, não para o espetáculo catastrófico, mas
para a equipe técnica dos bastidores que se esforça em cria-lo.
Ao fim, a ironia algo juvenil de Fellini
regressa para mostrar um Orlando vivo e náufrago em um mundo agora em guerra.
Dá para rir (um riso
agridoce é preciso dizer) com a parábola surreal e caricata de Fellini, mas ele
não faz a menor questão de atenuar as desavenças dos homens.
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