terça-feira, 26 de março de 2019

E La Nave Vá

Se todo o resto de “E La Nave Vá” fosse assim redundante, ele ainda seria antológico por seu prólogo. Nele, um cais de porto é registrado em tom sépia, preto & branco. Pessoas comuns, transeuntes e estivadores aparecem em cena, muitas vezes surpresos pela presença do cinegrafista. Um silêncio denso é cortado somente por um ruído a sugerir um projetor de cinema mudo.
O que vemos não foge muito de uma das filmagens pioneiras dos Irmãos Lumiére.
E é isso que é mesmo: No registro que adota (e que habilmente transfigura), Federico Fellini tangencia o princípio de sua jornada emoldurando-o com a evolução do próprio cinema; aos poucos, outros sons vão se infiltrando na filmagem (barulhos locais, música) enquanto o sépia dá lugar à cor; o cinema mudo vira cinema falado; o documentário vira um filme de ficção.
E nessa ficção, o luxuoso transatlântico que abrigará a trama do filme recebe as cinzas da famosa cantora Edmea Tetua para seu iminente funeral em alto-mar –esse trecho de ópera, “E La Nave Vá”, dá nome ao filme e à música que é entoada.
Negligenciando deliberadamente as formalidades dramatúrgicas convencionais do cinema, este trabalho de Fellini é todo estilo. Uma sucessão inspirada, espalhafatosa e surreal de cenas e situações que ilustram minúcia, alegoria e senso onírico.
A fim de prestigiar o célebre ato fúnebre, toda sorte da aristocracia, política e arte europeia do início do Século XX povoa o navio, e seu protagonista, Orlando (Freddie Jones, uma rápida participação em “Coração Selvagem”), não à toa, é um jornalista que, ao quebrar a quarta parede, se assume como os olhos da plateia (e do próprio diretor).
Desse encontro do exemplar comum (os humildes e anônimos operários do navio) com a representação da arte (as figuras iconoclastas e singulares que compõem os passageiros), Fellini extrai cenas memoráveis em sua unidade: Dois aclamados músicos executam uma espécie de duelo produzindo notas com os cristais nas taças de água da cozinha para deleite dos funcionários; duas passageiras admiram a beleza artificial de um lindo pôr-do-sol (que ironicamente Fellini faz ser artificial de fato); um tenor de ópera paralisa uma galinha com o poder de sua voz; numa condescendente visita às caldeiras, um grupo de cantores inicia uma disputa musical pelos aplausos dos suados trabalhadores.
A obra de Fellini segue nesse viés quase desiludido, sem um conflito que o faça tenso; sem um drama que o faça absorvente; sem uma lógica narrativa que o faça acessível.
Afinal, a arte, Fellini compreende, tem lá esse ônus.
É já na metade de seu segundo terço que o filme ganha um sabor mais autêntico em seu retrato das complicações raciais, culturais, econômicas e políticas que fragmentaram a Europa após a Primeira Guerra Mundial, quando surgem refugiados sérvios no navio, fugitivos da recém-declarada guerra com a Áustria.
O contraponto à nobreza fútil e hedonista e os despossuídos da guerra vai perdendo cada vez menos seu contraste absurdista do início para agregar um certo esforço de conciliação.
Os empuxos da guerra deflagrada no mundo exterior ao navio chegam até seus passageiros quando todos já experimentam uma coexistência lírica e humanista que é inerente a Fellini e a todos os seus filmes, e ele encerra sua obra numa amarga manobra de metalinguagem –virando a câmera, no instante de uma tragédia, não para o espetáculo catastrófico, mas para a equipe técnica dos bastidores que se esforça em cria-lo.
Ao fim, a ironia algo juvenil de Fellini regressa para mostrar um Orlando vivo e náufrago em um mundo agora em guerra.
Dá para rir (um riso agridoce é preciso dizer) com a parábola surreal e caricata de Fellini, mas ele não faz a menor questão de atenuar as desavenças dos homens.

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