Representa uma espécie de marco temático na
carreira de Quentin Tarantino o épico de guerra “Bastardos Inglórios”: Ele não
somente era um passo além nas tramas atrevidas e rocambolescas que ele urgia,
como também representou uma prova cabal perante a indústria da qualidade de seu
realizador, tão emaranhado em projetos anteriores que resgatavam a essência dos
filmes B (“Kill Bill Vol. 1 e 2”, “A Prova de Morte” do “Projeto Grindhouse”)
que muitos começavam a achar que eram filmes B que Tarantino passaria então a
fazer.
Ao conceber aquele que promete ser um de seus
últimos trabalhos antes de sua aposentadoria (ele afirma que irá parar em dez
longa-metragens), Tarantino realiza aqui um compêndio de sua paixão e de sua
compreensão de cinema amparado numa estrutura que, seja em sua minúcia ou em
sua amplitude, remete à “Bastardos Inglórios”.
Situado no ano de 1969, “Era Uma Vez... Em
Hollywood” já denota certa desconstrução daquilo que Tarantino habituou o
público ao exibir um trabalho de absoluta clareza e nitidez em sua direção de
fotografia (a cargo de Robert Richardson) –não é intenção dele, desta vez,
recriar a impressão dos filmes feitos naquele período, como ele o fez com os
filtros empoirados e envelhecidos de “A Prova de Morte”; aqui, Tarantino quer
recriar a impressão de se estar naquele período, a acompanhar lado a lado a
trajetória de seus três maravilhosos protagonistas, o ator Rick Dalton
(Leonardo Dicaprio), o dublê Cliff Booth (Brad Pitt) e a atriz Sharon Tate
(Margot Robie).
Rick foi astro de uma série televisiva de
faroeste –e, desde então, seu dublê, Cliff trabalha como seu braço direito e
‘faz tudo’, inclusive como seu motorista –entretanto, ele apostou tudo numa
tentativa de emplacar como astro de cinema. Algo que, num diálogo ocorrido em
uma das primeiras cenas, o diretor vivido por Al Pacino deixará bem claro que
está cada vez mais longe de acontecer: Como no estupendo diálogo inicial entre
o Coronel Hans Landa e o fazendeiro francês em “Bastardos...”, o diálogo entre
Pacino e Dicaprio começa amistoso, cheio de frivolidade, contudo, mestre da
escrita que é, Tarantino usa os elementos da dinâmica para distorcer sua
condução e transformar a gentileza em crueldade (sem, no entanto, fazer parecer
que deixou de ser gentileza).
Para Rick Dalton, o fracasso sinaliza com os
papéis de vilões a que ele parece restringido e às oportunidades, que ele
considera pouco lisonjeiras, para fazer faroestes na Itália (com Sergio
Corbucci!).
Nesse ínterim, Cliff acompanha o amigo,
pairando com a máxima descontração possível sobre os dramas do showbuziness,
sem deixar de ser ocasionalmente afetado por um ou outro: Apesar da atitude boa
praça, corre o boato de Cliff ter assassinado a própria esposa (trecho que
Tarantino revela num audacioso flashback dentro de um flashback), e também a
famigerada história do arranca-rabo que ele arranjou com Bruce Lee em pessoa
(vivido de forma assoberbadamente caricatural por Mike Moh).
Já, Sharon Tate –a única personagem real dentre
os protagonistas –é um caso à parte. Ela tem pouco diálogos, e mesmo sua
presença nos planos de câmera é rápida demais para podermos contemplar o
suficente a adequação inebriante de Margot Robie ao papel (que, diga-se de
passagem, está fabulosa). Ela paira, etérea, pelas cenas do filme como se
tivesse vida demais para todo aquele restante de intriga urbana que Tarantino
materializa. Sua cena mais longa é também uma das mais memoráveis do filme:
Quando ela entra num cinema exibindo “Matt Helm Contra A Arma Secreta” não para
ver o filme, mas para se deliciar anonimamente com as reações do público à sua
participação.
“Era Uma Vez... Em Hollywood” é assim uma
amostra notável desse gênio que manipula as engrenagens da narrativa
cinematográfica como poucos, contudo, Tarantino não está só em sua excelência.
Após ganhar um merecidíssimo Oscar de Melhor Ator por “O Regresso”, Dicaprio
prova que nem por isso deixou de ser formidável –seu Rick Dalton é engraçado,
passional e vulnerável, equilibrando facetas tão bem trabalhadas e estudadas
como os cacoetes de quando se vê constrangido ou as inseguranças de quando se
vê testado.
Também
ele sensacional (ainda que num personagem não tão complexo), Brad Pitt reina
supremo em pelo menos duas das melhores cenas de todo o longa (talvez, duas das
melhores cenas do ano!): A primeira, quando uma carona nada inocente a uma
hippie ninfeta o leva até uma comunidade alternativa gerenciada por ninguém
menos que Charles Mason. O suspense que Tarantino impõe nessa sequência é de
uma execução genial no entendimento absoluto dos códigos que dilatam e
comprimem a narrativa.
A segunda, se dá já no retumbante trecho final
do filme, e é preciso –por conta dela –lembrar que, talvez, aqueles
expectadores que entrarem no cinema ignorantes da história real envolvendo a
atriz Sharon Tate e seu marido, o diretor Roman Polanski, podem não ficar tão
impactados com o clímax, ou nem tampouco, entender a desconfiguração de
realidade que o filme promove: Como em “Bastardos Inglórios”, Tarantino não
resiste, nessa parte final, à tentação de reescrever a história. E ele o faz
com tal convicção raivosa que transforma essa cena em uma catarse.
Este é um filme de detalhes que parecem
aleatórios em primeira mão, mas que haverão de se mostrar –sobretudo nesse
desfecho magistral –serem estratégias plantadas com astúcia quando tudo se
fundir num só empuxo narrativo.
Deixem eu deslumbrar-me com
“Era Uma Vez... Em Hollywood”, porque ele é um filme deslumbrante.
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