sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Alice No País das Maravilhas No Cinema

Existe algo de perene e universal no conto “Alice No País das Maravilhas” que o faz não somente continuar atual e pertinente na memória de sucessivas gerações de crianças, como também servir de forte referência para inúmeros outros trabalhos que a ele devem muito de sua premissa básica, como a animação japonesa “A Viagem de Chihiro”, de Haya Myazaki (um grande entusiasta da obra de Lewis Carroll) e o clássico “Labirinto-A Magia do Tempo”.
As influências e adaptações propriamente ditas remetem à obras de todas as gerações, realizadas desde os primórdios do cinema e que totalizam mais de cem títulos (!), aqui, uma modesta lista que inclui as mais emblemáticas delas:

Alice No País das Maravilhas (1932)
A terceira adaptação cinematográfica do conto (sendo a segunda em versão falada) foi executada pela Paramount Pictures, uma produção de grande orçamento à época tirou proveito da comemoração do centenário de Lewis Carroll, celebrado naquele mesmo ano.
Dirigido por Norman McLeod, é um trabalho que envelheceu muito mal (embora hajam relatos de que mesmo naquela época tenha sido mal recebido), e suas escolhas estéticas (os figurinos portentosos e a maquiagem cartunesca escondem os célebres rostos do elenco que contam com grandes astros do período como Gary Cooper e Cary Grant) aliadas ao ritmo lento prejudicam muito a apreciação do material que, de fato, dispõe de grandes valores de produção. A direção parece contentar-se com um registro numa linguagem de teatro filmado que engessa a encenação e remove qualquer elemento na história que pudesse cativar o público –haveriam ainda muitos anos de experiência para o cinema comercial dos estúdios assimilar uma capacidade técnica e artística aprazível para conquistar as platéias.

Alice No País das Maravilhas (1949)
Houve também, pouco antes da versão da Disney –para muitos a versão definitiva –um filme francês que aproveitou o conto clássico e dele concebeu uma obra musical (característica compartilhada por muitas adaptações que vieram depois), talvez, como forma de ilustrar cenicamente os lapsos de insanidade propostos no livro e atribuídos a seus personagens.
A direção de Dallas Bower confere uma relativa solenidade teatral à encenação das peripécias de Alice (a bela Carol Marsh), numa engessada postura estética que seria virada de pernas para o ar dois anos depois, quando fosse lançada a animação da Disney.

Alice No País das Maravilhas (1951)
Embora mal-sucedido, é inegável que muitos elementos visuais e referenciais do filme de Norman McLeod foram utilizados por Walt Disney neste seu longa-metragem animado, a mais famosa provavelmente dentre todas as adaptações já feitas da obra de Carroll.
Criança educada nos modorrentos ambientes de uma Inglaterra vitoriana, a pequena Alice, durante um bucólico passeio no parque, resolve seguir um coelho branco, de comportamento intrigante. A criatura, sempre atrasada para alguma coisa, a conduz por um mundo esquisito e diferente, onde ela cruza-se com um chapeleiro maluco, a tomar chá de forma anárquica junto de uma lebre igualmente aloprada; uma lagarta bonachona e fumante que parece se mover e se expressar em slow motion; uma psicótica rainha de copas, obcecada em tirar a cabeça daqueles que lhe desagradam; e muitos outros.
E é aqui, onde surge uma das cenas mais terrivelmente inesquecíveis da minha memória afetiva cinéfila particular: É impossível não ficar chocado com os desdobramentos traumáticos da seqüência conhecida por “A Morsa e O Carpinteiro”, inclusive por que, em se tratando de uma obra de Walt Disney, não é esperado que a animação faça jus ao fatalismo inesperado desse segmento. E ele o faz –esse é, para mim, um dos momentos mais verdadeiramente horripilantes desse desenho!
Muitos vêem nesse filme uma analogia aos delírios lisérgicos de alucinógenos dos anos 1960 de então, não obstante a essa proposital ou não referência à contracultura (e ela faz um enorme sentido!), os Estúdios Disney realmente entregam aqui seu mais psicodélico trabalho.

Alice In Wonderland (1966)
Uma obra britânica (como também o era a primeira adaptação, uma curta-metragem em live-action, ainda na época do cinema mudo, em 1933), este “Alice...” foi dirigido por Jonathan Miller, contava com um elenco bastante conhecido (John Gielgud como Mock Turtle, Peter Sellers como Rei de Copas e por aí vai) e fazia parte de uma série inglesa que explorava contos clássicos –se for levar em conta todas as produções também televisivas sobre Alice, esta lista ficaria grande demais, por isso colocarei apenas esta como uma espécie de “representante” das obras feitas para TV, e porque esta versão tem uma característica bastante interessante.
Aqui, a Alice, interpretada pela jovem Anne-Marie Mallik, difere das outras em face do ressaltado tom sombrio com o qual reage aos acontecimentos; tanto que chega quase a oprimir alguns dos coadjuvantes! É uma Alice mais selvagem, mais difícil, o quê contribui para a visão pouco ortodoxa do diretor: Em vários momentos, Miller quer transformar sua obra num filme de terror (auxiliado pela extremamente lúgubre fotografia em preto e branco), inclusive mantendo a humanidade de muitos personagens –não há maquiagem ou figurino que transforma o elenco em criaturas surreais, por exemplo, o quê lhe confere amedrontadora discrição –porém, as ocasionais inserções de absurdo –inerentes ao conto de Carroll –transformam este trabalho quase num precursor dos filmes estranhos, enigmáticos e assustadoramente oníricos de David Lynch.

Alice’s Adventures In Wonderland (1972)
Outra obra inglesa, desta vez um musical cuja narrativa parece estabelecer um vínculo artístico entre este filme e o clássico de 1939, “O Mágico de Oz”, são muitas as similaridades, sobretudo na tentativa de atribuir pequenas narrativas e motivações aos personagens coadjuvantes que orbitam Alice, no prólogo que estabelece uma situação mais distinta (e que vale-se de um ator vivendo o próprio Lewis Carroll), num aproveitamento algo irregular do segundo livro (“Alice Através do Espelho”) e ,sobretudo, na inserção de seqüências cantaroladas pelos intérpretes –embora esse recurso apareça, aqui, com certa timidez.
Este filme ganhou o prêmio BAFTA de Melhor Figurino e Melhor Direção de Fotografia.
Curiosidade: Peter Sellers, que no filme de 1966 fez o Rei de Copas, neste daqui interpreta a Lebre de Março!

Alice No País das Maravilhas Eróticas (1976)
Uma hora teria de acontecer: Eis que uma versão pornográfica (e musical!) foi realizada do conto de Lewis Carroll –é claro que, sendo assim, não há como avaliar este filme da mesma forma que é feito com obras convencionais de cinema.
Há nele uma atmosfera de libertinagem e psicodelismo muito típica da década de 1970 –fazendo-o remeter em muitos momentos o clássico “Garganta Profunda” –no papel de Alice, a atriz Kristine DeBell se mostra desinibida em cenas que reinterpretam as segundas intenções presentes na obra –são inúmeras, por exemplo, as cenas de lesbianismo deste filme. Vale lembrar que Lewis Carroll, e seu conto clássico, sempre foram vistos por um prisma reprovador: Ele alimentou por muito tempo um desejo ardente pela menina chamada Alice (menor de idade, diga-se) que veio a desposar e teria o inspirado a criar a personagem e suas histórias, fato que atribui uma natureza de pedofilia na forma com que muitos vêem o livro.
Todavia, as atrizes deste filme (e protagonistas de muitas cenas de nudez e sexo explícito), são todas perfeitamente maiores de idade.
É claro que houveram muitas outras versões eróticas de “Alice...” –incluindo uma estrelada por Sasha Grey –mas, vamos nos ater somente à esta...

Alice Ou A Última Fuga (1977)
Vem da França uma das mais interessantes e diversificadas versões do clássico.
O diretor Claude Chabrol deposita aqui muitas de suas inquietações existenciais de nível íntimo (muito parecido com o que certamente Lewis Carroll um dia fez com seu livro), ao transpor a trama para um contexto de tal forma radical que muitos não enxergam nele uma adaptação –nem tampouco uma relação com o material.
Mas, atentemos aos pequenos detalhes: A curvilínea e excitante Sylvia Kristel (em alta com o sucesso de “Emmanuelle”, mas justamente por isso tentando projetos insólitos como este a fim de escapar da enorme sombra daquele personagem) interpreta uma personagem chamada Alice Carroll (!).
Quando o filme se inicia ela abandona o marido (seria ele o próprio Lewis Carroll, e essa protagonista, na visão idiossincrática de Chabrol, a Alice original que inspirou o conto, a atuar numa versão alternativa?), e abandona também a vida matrimonial burguesa que tinha fugindo de carro por uma estrada afora. Isso a leva até um estranho hotel a beira de estrada onde ela se vê obriga a pernoitar quando seu carro enguiça –na verdade, apenas estraga o limpador de pára-brisa.
Os personagens e situações surreais, com os quais ela irá se cruzar, agregam uma relação ocasionalmente sutil com o livro de Lewis Carroll, embora o estranhamento da premissa e, em especial, do clima suscitado (que lembra uma síntese irregular entre Buñuel e Hitchcock) tenha diretamente a ver com “Alice No País das Maravilhas”.
Ah, sim: Os fãs não precisam ficar decepcionados, o filme tem, de fato, uma belíssima cena de nudez de Sylvia Kristel!

O Estranho Mundo de Alice (1982)
A década de 1980 foi prolífica em trabalhos que buscaram capturar a característica ímpar de dramaticidade macabra da obra de Lewis Carroll. Lá surgiram obras como este inusitado musical, quase um média-metragem (apenas oitenta e dois minutos de duração), que já era raro na época das fitas de VHS.
Nele, Alice é uma jovem que desmaia num parque ao ver um homem prestes a ser baleado. Ao despertar, ela é acudida pelo mesmo homem. À medida que o filme avança, ele revela-se uma figura estranha que, ao longo dos dias cruza-se com ela de forma aparentemente casual, não deixando, contudo, de assediá-la.
Falho em relação à sua coreografia (e a outros quesitos no que tange ao gênero musical) esta modernização do conto, transposta para um ambiente urbano, possui elementos ora curiosos e originais (Susannah York como a Rainha de Copas e Jean-Pierre Cassel como o Coelho Branco), ora tolos e equivocados (um tom entre o sombrio e o fatalista, e a descontração do musical que nunca se harmoniza de fato).

Alice (1988)
Uma realização tcheca, dirigida por Jan Svankmajer, esta é uma das obras mais desiguais à abordar o conto de Carroll –especializado em animação, Svankmajer cerca sua protagonista, a pequena Kristyna Kohoutová, por efeitos práticos animados em stop-motion, que dão uma atmosfera de surreal estranhamento e opressão, extremamente apropriada à natureza distorcida que o trabalho de Carroll sempre demonstrou em relação aos outros contos de fadas clássicos. Para tornar a experiência ainda mais intrigante e desconcertante, o diretor Svankmajer quebra a linguagem narrativa (difícil dizer se é deliberado ou se é fruto de uma certa inexperiência) com inserções inusitadas e inesperadas que desestabilizam o sossego do expectador. Inevitavelmente, um cult-movie com todas as letras!

Alice No País das Maravilhas (1999)
A década de 1990 se encerrou dando sua própria contribuição ao roll de adaptações de Lewis Carroll com esta obra de Nick Willing que tem lá seus méritos: Ele quebra algumas das convenções que surgiram referentes à adaptações a partir da animação da Disney, como por exemplo, a Alice predominantemente loira –a intérprete aqui é a menina de cabelos escuros, Tina Majorino, uma das estrelas-mirins do período, mas que marcou presença em produções problemáticas como “Waterworld-O Segredo das Águas”.
O elenco, por sinal, é um espetáculo à parte: Whoopi Goldberg como o Gato Sorrdente, Ben Kingsley como a Lagarta, Gene Wilder como Mock Turtle, Christopher Loyd como o Cavaleiro Branco, Martin Short como o Chapeleiro Maluco, Miranda Richardson como a Rainha de Copas, Peter Ustinov como a Morsa e Peter Postlethwaite como o carpinteiro (!).
A seu favor, este filme tem um ritmo dinâmico imposto pela direção e uma considerável fidelidade ao livro que o distingue entre as adaptações, contra ele o fato de ser disperso e exceder as duas horas de duração.

Alice No País das Maravilhas (2010)
Se o “Alice...” de Walt Disney é considerada a versão mais famosa do conto, para os expectadores jovens, isso não chega a ser verdade: A maioria deles reconhece com muito mais facilidade esta nova versão, dirigida por Tim Burton, com seu astro-fetiche, Johnny Depp (no papel de um esquizofrênico Chapeleiro Maluco), que pegou carona na onda de filmes em 3D, inaugurada por “Avatar” no ano anterior, e cuja boa bilheteria praticamente deu o estopim às versões live-action dos clássicos animados da Disney, o quê levou à realização de “Malévola”, “Cinderella”, “Mogli-O Menino Lobo” e outros.
Ao contrário dessas produções que o sucederam este filme é, de uma certa forma, uma espécie de continuação do clássico animado Disney, onde Burton abandona a animação para conceber uma encenação real povoada por efeitos visuais de última geração –e francamente capazes de encher os olhos! Seu pecado, contudo, é (para o espanto de quem esperava um filme de Tim Burton nos moldes de seus trabalhos sombrios da primeira fase de sua carreira) a suavização dos elementos sombrios que conferiam personalidade ao conto, e a conseqüente distorção de muitos conceitos embutidos nos personagens (que foram muito mais respeitados por obras anteriores que não tinham o mesmo requinte desta daqui), o quê aproxima este novo “Alice...” do convencionalismo de outros contos de fadas já adaptados para o cinema.
Dessa forma, encontramos Alice crescida (interpretada com alguma ênfase por Mia Wasikowska), quase uma mulher, quando está prestes a responder a um pedido de casamento de um pretendente desajeitado que mal conhece. Durante a constrangedora cerimônia em que seria anunciado o seu noivado, a moça persegue, intrigada, um coelho branco pelo jardim, e acaba por atravessar um portal que a leva ao inusitado País das Maravilhas, povoado por criaturas nunca menos que estranhas como o Chapeleiro Maluco, o Gato Sorridente, e outros. Todos seres que ela julgava ter visto em sonhos que a assombravam desde pequena, quando na verdade, ela já havia estado lá a muito tempo atrás. A chegada de Alice é recebida como um sinal de que a insurreição desses personagens contra a tirânica Rainha Vermelha (obcecada em arrancar a cabeça de todos os seus desafetos) pode estar próxima do fim.
Na frustrante reinterpretação de Burton (muito mais desanimadora do que de fato parece), a loucura atribuída aos personagens desmiolados de Carroll nada mais é do que um ímpeto revolucionário contra o sistema vigente –e o diretor coroa sua descaracterização dos conceitos de Lewis Carroll encerrando seu filme com uma batalha campal no pior estilo “Crônicas de Nárnia”.

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