segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Não Olhe Para Cima


 Há quem se pergunte se ainda há espaço para a inteligência no atual cinema comercial moderno. Na ânsia por encontrar uma resposta positiva, o diretor e roteirista Adam McKay se firmou nos últimos anos como um autor singular, capaz de capturar complexidade, loquacidade, atualidade e urgência num caldeirão bem-humorado e contundente em refletir os percalços do mundo real. Dessa predisposição surgiu o clássico moderno “A Grande Aposta”, o engajado “Vice” e este “Não Olhe Para Cima”.

Anunciado como a maior superprodução bancada pela Netflix até então –e tal ambição se reflete em cena com os nomes estupendos que abarrotam seu elenco estelar –o filme de McKay era, em si, uma alegoria crítica ao descaso ostentado por alguns líderes mundiais ao aquecimento global. Porém, sua produção –iniciada nos últimos meses de 2019 –precisou ser interrompida com a chegada da pandemia de 2020, sendo retomada em 2021, deixando o filme pronto para ser lançado nos últimos meses desse ano. Essas circunstâncias, é correto afirmar, modificaram de tal forma a percepção de público e crítica do filme que “Não Olhe Para Cima” se tornou algo que, em princípio, nem seu realizador previa: Uma observação pertinente, ácida e implacável das facetas mesquinhas e calculistas do negacionismo, e também, uma horripilante constatação de todas as celeumas que empurram a humanidade rumo ao seu fim.

A começar essa narrativa hilariamente angustiante, temos a jovem Dra. Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) cuja descoberta, de um cometa em rota de colisão com a Terra é compartilhada com seu professor, o Dr. Randall Mindy (Leonardo Dicaprio). Seguindo o raciocínio lógico, Randall e Kate tentam avisar as autoridades desse perigo à raça humana, entretanto, raciocínio lógico é algo que, deveras, não faz parte da cartilha de quase nenhum dos outros personagens que orbitam seus protagonistas e –o que é pior! –alguns deles habitando esferas políticas de fundamental liderança mundial. Como é o caso da presidente Janie Orlean, vivida por Meryl Streep, numa clara alusão à Donald Trump.

É desconcertante toda a sequência em que Randall e Kate tentam, à duras penas, uma audiência na Casa Branca, e são recebidos com descrédito estarrecedor e indulgência alarmante pela Chefe de Estado e seu filho, Jason (Jonah Hill que personifica bem as facetas mais assombrosamente amorais e revoltantes do nepotismo). Em suma, eis o mote em torno do qual “Não Olhe Para Cima” gira: O fato de que, mesmo estando o fim do mundo e seus indícios escancarados à sua frente, muitas são as pessoas que escolhem não crer em sua existência. Trata-se de McKay, como o genuíno autor que é, se voltando para um fenômeno bastante inusitado e preocupante nos tempos digitais de hoje; a pós-verdade –as pessoas já não ligam mais para a verdade, para os fatos e as informações, elas preferem escolher a narrativa que mais lhes agrada, com a qual mais simpatizam, e a defendem com unhas e dentes.

É assim que Randall e Kate, com a ajuda do Dr. Oglethorpe (Rob Morgan, de “Confronto No Pavilhão 99”), conseguem pouco mais que tornarem-se memes na internet (!), após tentarem, em vão, alertar a população por meio do alienado e midiático programa de TV apresentado pelos histriônicos apresentadores vividos por Tyler Perry e Cate Blanchett. A verdade só começa a ser aceita –talvez, um tanto quanto tarde demais –quando as eleições vindouras apontam um prognóstico pessimista para a reeleição de Orlean, o que a obriga, junto de todos os seus senadores e conselheiros, a recorrer a uma manobra populista, financiando uma missão para desviar a rota do cometa. E mesmo aí, no que aparenta ser o rumo natural de todo o filme-catástrofe ao estilo “Armageddon” –o que enganosamente a obra de McKay parece ser –“Não Olhe Para Cima” continua subvertendo: Surge o empresário, inovador e avoado Peter Isherwell (Mark Rylance, hábil em personagens que despertam certa injúria no público) que, na qualidade de financiador principal da campanha (leia-se, manda nela mais que a própria presidente), tem a ideia de jerico de desistir da tentativa de destruir o cometa e, ao invés disso, aproveitar o vasto contingente mineral que é a sua constituição, para com aquilo ter um estoque infinito de matéria-prima para confeccionar seus celulares.

São inúmeros os absurdos que “Não Olhe Para Cima” enfileira, um após o outro, dentro do contexto que se propõe, e eles só não espantam mais do que o fato de que, em grande medida, tudo reflete, e com bastante exatidão, ideologias em voga nos tempos polarizados de hoje. A alfinetada ao conservadorismo, à extrema-direita e ao escrutínio midiático culturalmente questionável é bastante evidente –e certamente Mckay valeu-se do intervalo forçado da pandemia para aproximar seu roteiro ainda mais da deplorável condição política da atualidade –mas, “Não Olhe Para Cima” se propõe a uma reflexão muito mais relevante e válida: Do quanto se perdeu, em compreensão e empatia, nas nossas relações humanas com a chegada de ferramentas digitais que só fizeram nos alienar ainda mais enquanto sociedade.

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