sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Fantasma


 A grande obra do diretor Don Coscarelli aparenta ser um filme que, quando assistido em sua unidade, se mostra uma realização afoita de terror, indicativa da inclinação nerd de seu autor (são diversas, por exemplo, as referências ao livro “Duna”, de Frank Herbert, isso numa época anterior à catástrofe perpetrada por David Lynch, e ainda mais ao épico soberbo de Denis Vileneuve) e ao entusiasmo criativo em sua gênese –os elementos que compõem muito do que presumimos como narrativa mal ganham uma explicação, um background, ou mesmo uma motivação para o que se passa. Contudo sabemos, na condição de expectadores de um presente atual, que “Fantasma” é o primeiro capítulo de uma saga cinematográfica que compreende cinco filmes. Sabemos que o antagonista, Tall Man (vivido com presença singular por Angus Scrimm), bem como os mocinhos que o enfrentam, estão fadados a aparecerem nas outras produções e que, portanto, na falta de esclarecimento para muitos tópicos nebulosos deste filme (e eles são inúmeros!), outros virão para os elucidar.

Todavia, é curioso imaginar o que os expectadores de então (no caso, 1979) devem ter achado disso tudo: Numa época em que ‘franquia cinematográfica’ se resumia, quando muito, à “Star Wars”, Don Coscarelli surgiu em meio às trincheiras do terror de baixo orçamento para criar esta pequena pérola do gênero: Numa cidadezinha bucólica norte-americana, três protagonistas casuais se defrontam com uma verdadeira entidade do mal.São eles, os irmãos Jody (o ator, depois cantor, Bill Thornbury) e Mike (o prodigioso garoto A. Michael Baldwin), bem como o sorveteiro e boa-praça Reggie (o ótimo Reggie Bannister).

Orfãos de pai e mãe, Jody e Mike levam a vida como podem: Enquanto Jody traça uma rotina corriqueira dos jovens do lugar –trabalha, bebe e flerta com mulheres no bar local –são irmão mais jovem, Mike, quase um adolescente, o segue por todo o lugar.

É assim que Mike descobre indícios um tanto suspeitos no esquisitíssimo zelador da Funerária Morningside (o próprio Tall Man, de Angus Scrimm, que nunca ganha outra alcunha além dessa). Após o assassinato de um dos amigos de Jody –ocorrido na primeira cena, na qual já nos são reveladas as particularidades sobrenaturais do vilão –Mike descobre, durante o enterro, a força sobre-humana do Tall Man.

Não é só: Dicas da clarividente local (em cuja aparição é decalcada a cena do Gom Jabbar, de “Duna”) e outras pistas fazem o garoto, cada vez mais, testemunhar a procedência misteriosa e perigosa do agente funerário.

Em seu primeiro terço, “Fantasma” emula assim uma narrativa bastante convencional do terror, na qual o protagonista aflito e alarmado (Mike) tenta alertar outros personagens (Jody, no caso) do perigo em potencial, tão evidente para ele e para o público (o Tall Man), sem jamais levar o devido crédito. Por sorte, a noção afiada de ritmo e clímax do diretor Coscarelli não permite que seu filme exaspere a paciência do expectador, logo, “Fantasma” migra para uma situação de embate entre as forças improváveis do bem (a equipe de heróis montada meio ao acaso) e os peculiares representantes do mal (o Tall Man e outros elementos que o cercam, como anõezinhos malvados e encapuzados, também eles inspirados em “Duna” e “Star Wars”, e as antológicas esferas prateadas voadoras) cuja mitologia, neste filme inicial, não ganham maiores explicações, ficando tudo no terreno da mera apresentação.

“Fantasma” em geral, e o Tall Man, em particular, são na verdade criações que, à sua maneira, englobam toda a metodologia que define o gênero de terror: A necessidade de sangue e vítimas oriunda dos vampiros, a alienação catatônica dos mortos-vivos, as aparições súbitas e repentinas, as transformações imprevistas (com direito à cenas de nudez!) e um sem-fim de referências que, num primeiro momento, não deixam notar o quanto Coscarelli foi criterioso ao harmonizar essa sua estranha e apaixonada salada conceitual.

Como todo trabalho alvo de incompreensão na época a que pertenceu, “Fantasma” não chegou a ser um sucesso, mas tornou-se um cult movie, fato que levou, à duras penas, seu realizador a continuá-lo, ao longo da década de 1980. Os apreciadores até hoje especulam se as sequências (muitas delas responsáveis por justificar, contextualizar e explicar algumas estranhezas que se sucedem neste primeiro filme) estavam planejadas (como o próprio Coscarelli sempre afirmou) ou se tudo não foi um imenso improviso ao sabor dos acontecimentos e das oportunidades que apareceram.

A julgar por este promissor e instigante primeiro filme, sim, por mais notável e improvável que possa parecer, de fato, é como se Coscarelli, tal e qual um maestro inspirado, macabro e travesso, tivesse tudo planejado de antemão: O rumo dado à alguns personagens (sobretudo, ao rouba-cenas Reggie), a maneira elíptica com que alguns desfechos são impostos na parte final, os ganchos narrativos mantidos no roteiro e até mesmo a decisão de toda a explicação ficar em aberto depõem a favor do fato de que, sim, como se fosse um George Lucas do terror underground, Don Coscarelli tinha, desde o começo, um plano em gestação para a longa e memorável saga da qual este pequeno, singelo, frenético e surpreendente filme foi o estopim inicial.

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