domingo, 24 de outubro de 2021

DUNA - Primeira Parte


 In Denis Villeneuve we trust

Já era lendária a afirmação de que “Duna”, a obra-prima literária de Frank Herbert, tratava-se de um trabalho impossível de ser adaptado. As tentativas anteriores de transpô-lo para a linguagem cinematográfica (o filme de 1984 de David Lynch, a minissérie do ano 2000, além do projeto jamais concretizado por Alejandro Jodorowsky) soavam mais como confirmações da inviabilidade do material em ser vertido para outra narrativa do que realizações bem-sucedidas de fato.

Todavia, o canadense Denis Villeneuve, que desde sua estréia só fez brilhar em aclamadas produções, tomou para si a responsabilidade de fazer o impossível, depois de sagrar-se com duas espetaculares obras de ficção científica –o magistralmente intimista “A Chegada”, e a continuação audaciosamente superior ao cultuado original “Blade Runner 2049”. Para esta nova e, espera-se, definitiva versão, Villeneuve tomou emprestadas ideias mercadologicamente surgidas a partir da adaptação de “O Senhor dos Anéis”, por Peter Jackson, em 2001: Dividiu o tomo gigantesco de Frank Herbert em dois longa-metragens de generosa duração –a realização da Segunda Parte depende, portanto, do bom desemprenho de público e crítica da Primeira Parte.

“Duna” se passa no ano de 10161. O espaço é um palco de interesses políticos regidos por casas que disputam o poder tal e qual o mais brutal dos sistemas feudais. E o centro da maioria das disputas vem a ser o planeta Arrakis, lugar desértico que gera o produto conhecido como ‘especiaria’ –um pó obtido entre as areias de seus intermináveis desertos, com o qual as viagens interestelares se tornam possíveis.

Por décadas, o domínio e a extração da ‘especiaria’, bem como os atritos selvagens contra os habitantes de Arrakis, o povo do deserto conhecido como os Fremen, ficaram à cargo da Casa Harkonnen, comandada pelo hediondo, grotesco e pernicioso Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgaard) e seu sobrinho Glossu Raban (Dave Bautista, no personagem que foi de Paul L. Smith na versão de David Lynch).

Numa decisão delegada pelo Imperador Galáctico –esta obra, como pode-se notar, foi uma das inspirações de George Lucas para “Star Wars” –o comando de Arrakis passa da Casa Harkonnen para a Casa Atreides.

É aí que entram em cena os protagonistas da trama: O Duque Leto Atreides (Oscar Isaacs), sua esposa Jessica (a maravilhosa Rebecca Fergunson) e, sobretudo, seu filho, Paul (Timothée Chamalet). Sendo Jessica uma integrante das Bene Gesserit, uma casta de feiticeiras imbuídas do dom da premonição, ela e seus pares acreditam que Paul, por sua procedência e por outros indícios que se sucedem (como sonhos nos quais ele vislumbra um futuro bem provável e perigoso), possa ser um messias, esperado há tempos para mudar irreversivelmente a escala de poder.

Dentro do que se propôs, o diretor Villeneuve, só pra variar, realizou um trabalho simplesmente brilhante: Não apenas seu “Duna” ostenta qualidades cinematográficas inquestionáveis em sua grandiosidade (é recomendado que seja visto na maior tela possível tamanho é o deslumbre de seu escopo épico), como também é primorosamente minimalista em seus pequenos detalhes (como os olhos azuis dos Fremen, adquiridos através da exposição à ‘especiaria’) e hiperlativo nas influências que adota: “Duna” é, pois, tão sólido e imponente quanto “Lawrence da Arábia”, tão contundente e estilizado quanto “Kagemusha”, tão antológico e singular quanto “2001-Uma Odisséia No Espaço”.

Esta Primeira Parte fala sobre os fardos da predestinação, sobre os revezes imprevisíveis da ganância e as armadilhas cruéis do idealismo: Uma vez em Arrakis, O Duque Leto Atreides almeja o que seus antecessores jamais cogitaram; uma trégua de convívio e co-existência pacífica com os Fremen. E será justamente por suas nobres intenções que engrenagens insidiosas irão mover uma conspiração capitaneada pelos Harkonnen, algo que proporciona, já na segunda metade deste filme, cenas estupendas de batalha, filmadas por Villeneuve com uma sinergia e um senso de realismo que há algum tempo não surgia em uma obra de fantasia nas telas de cinema. Quem conhece remotamente a trama, seja pelo filme incoerente e corrido de David Lynch, seja pelo conhecimento do enredo do livro de Herbert, perceberá que Villeneuve encerra a narrativa quando a história se encontra na sua metade –ele aproveita esse tempo de tela para fazer tudo o que o filme de Lynch não conseguiu fazê-lo, seja estabelecer a profundidade das inúmeras motivações, seja para compor cenas inteiras do livro com o ritmo e atmosfera corretos assim definidos por Herbert. O resultado não somente é de um assombro que raras produções foram capazes de atingir nos últimos anos, como leva o público a um final em aberto tão instigante, empolgante e magnífico quanto foi o de “O Senhor dos Anéis-A Sociedade do Anel” e “O Império Contra-Ataca”.

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