Incrível como o roteiro escrito por Michael
Green e Hampton Fancher (este último, um dos roteiristas do primeiro filme)
consegue dar continuidade louvável à trama do cultuado “Blade Runner-O Caçadorde Andróides” sem, no entanto, cair na fácil armadilha de esclarecer alguns dos
mistérios que fizeram a fama tão perene do filme original.
Dirigido por Denis Villeneuve que substitui Ridley
Scott com perícia e propriedade, “Blade Runner 2049” mergulha nas questões
profundas que enriqueciam e engrandeciam o filme anterior: O limite entre o que
é sintético e o que é orgânico, entre o artificial e o natural, e a capacidade
assombrosa e quantitativa que a tecnologia tem para apagar essas fronteiras.
Se a capacidade de sentir emoções era a
diferença entre humanos e máquinas em 9 entre 10 filmes de ficção científica
com esse enredo, não é no primoroso trabalho de Villeneuve: Os replicantes –andróides
feitos de carne e osso que no filme original, passado em 2019, trinta anos
antes deste, se rebelaram contra os criadores –já a muito desenvolveram
capacidade para sentir; como é explicitado na relação de afetuosidade doméstica
entre o personagem de Ryan Gosling e a inteligência artificial vivida pela
absurdamente deliciosa Ana De Armas (de “Bata Antes de Entrar”), e já era
mostrado também no filme original, no relacionamento relutante, porém intenso
entre Deckard (Harrison Ford) e Rachel (Sean Young).
A grande diferença –ao menos, muitos presumiam –era
o fato de que humanos, como todas as outras formas de vida orgânica, podem procriar.
Contudo, quando o Oficial K (Ryan Gosling,
extraordinário) descobre os restos mortais de Rachel e, numa autópsia
minuciosamente futurística, fica evidente que a replicante do filme anterior
morreu ao dar a luz (!), descobre-se a abertura de um precedente para colocar
os replicantes em pé de igualdade com os humanos (e sendo assim, confrontá-los,
na possibilidade de uma devastadora guerra civil). As ordens de K dadas por sua
chefe (Robin Wright) são então para consumir com todas as provas e testemunhas,
incluindo aí encontrar o paradeiro do ex-blade runner Deckard, pai do filho
desaparecido de Rachel.
É uma corrida contra o tempo: Atrás de Deckard e
de seu segredo, por inúmeras razões existenciais e políticas, está também o
inventor e milionário Niander Wallace (Jared Leto), uma espécie de herdeiro do
legado da Tyrell Corporation, que coloca, no encalço de K, a fria e implacável
Luv (Sylvia Hoeks, uma das grandes antagonistas do ano).
E dizer mais entra no perigoso terreno em que
se entrega demais a trama cujas reviravoltas são tão geniais e inesperadas
quanto a força do cinema de Villeneuve.
Eram poucos, hoje, os cineastas verdadeiramente
capazes de criar uma continuidade válida para o seminal trabalho que Scott
entregou em 1982 (nem o próprio Ridley Scott foi capaz de fazê-lo,
pré-sequenciando seu “Alien” de maneira vulgar e insatisfatória com “Prometheus”
e “Alien-Covenant”), certamente, muitos foram os que temeram o resultado.
Entretanto, Villeneuve abraça o material com a
mesma tenacidade com a qual moldou em “A Chegada” uma das melhores ficções dos
últimos anos: “Blade Runner 2049” amplia o escopo do fabuloso e caótico mundo
futurista visto no original (agora, não só Los Angeles é vista –numa recriação
e ampliação fenomenal dos cenários do primeiro filme –como também vemos os
inacreditáveis escombros a perder de vista em Detroit, e o deserto radioativo e
abandonado de Las Vegas), dá uma seqüência natural, inteligente e reflexiva à
sua trama, honra todas as suas questões mostrando-se tão fascinante quanto e
deixa, ao fim, ainda mais perguntas do que respostas –é, pois, um espécime raro
no mainstream hollywoodiano, um filme que instiga, impõe questionamentos e
reflexões, e nos leva a pensar acerca de nossa humanidade e de suas mais ínfimas
imbricações.
Ele supera ainda o
original, numa questão bastante inesperada: No afeto que Villeneuve e sua
técnica prodigiosa capturam entre seus diversos personagens, nos flagrantes de
vínculos que os fazem humanos e lembram, em pormenores poderosos, a importância
fundamental da vida e o poder inigualável do amor.
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