A princípio, pode-se perguntar a quais circunstâncias parece tentar obedecer a técnica e a estética da diretora Chloe Zhao em “Nomadland”? Provavelmente nenhuma que reserve a seu filme qualquer redundância ao drama ou ao melodrama, ainda que todos os caminhos indiquem essa finalidade à premissa. Há, assim sendo, a personagem protagonista Fern, de Frances McDormand, e sua infindável, desamparada e resignada trajetória através das facetas mais ásperas da América –aquela que Hollywood insiste em camuflar e que o cinema independente, de maneira geral, luta ao tentar expor. E falando em expor, há aqui também o acurado senso de realidade da diretora que, na escolha criteriosa da direção de fotografia, revela a vida real árdua em seu silêncio contemplativo, vasta em sofrimento e privação, árida, extensa e incontornável. O mundo parece um grande deserto no qual os personagens peregrinam sem ostentar esperanças de um dia dele escapar.
Fern é, como tantos outros mais que ela
encontrará pelo caminho, uma das incalculáveis vítimas da crise financeira de
2008. Perdeu tudo o que materialmente tinha (casa, emprego, renda), e na
esteira dessa desgraça, vieram também as perdas pessoais (casamento, família,
dignidade). A ela restou, portanto, uma van dentro da qual cabe todos os seus
irrisórios pertences, e um mundo inteiro para percorrer em estradas desérticas,
a viver de subempregos que mal dão para comprar o alimento do dia e prover uma
precária manutenção ao seu automóvel –e com ele, continuar na estrada, em
perpétuo estado de transição. Ao encontrar essa circunstância específica –a do
desamparo inapelável –Chloe Zhao parece enfim encontrar o filme que tanto
queria discorrer; e sobre ele dedica a avidez de suas lentes do início ao fim.
Acaba que “Nomadland” é, pois, no drama
convicto que evoca, uma avaliação de um certo aspecto da Grande Recessão de
2008, como foi “A Grande Aposta” ou “Margin Call”, entretanto, diferente dos
brilhantes filmes de Adam McKay e de J.C. Chandor, o trabalho de Chloe Zhao não
mostra qualquer interesse na gênese mais ampla da questão –o do porque essa
mudança do status quo se deflagrou
–na postura neo-realista que adota sem concessões, Zhao quer lançar seu olhar
para os despossuídos, as pessoas reais para quem importou menos as complexas
razões pelas quais seu mundo ruiu, e mais os revezes muito verdadeiros que
tiveram de enfrentar, os percalços de natureza quase inacreditável que a
pobreza lhes impôs, o caminho de desventuras alarmantes de onde vieram e o
horizonte de imponderável desesperança para onde irão. Ao buscar essa verdade,
Chloe Zhao então faz de “Nomadland” uma espécie de vitrine, e tem em Frances
McDormand –não à toa também creditada como produtora –sua mais poderosa aliada:
Única a interpretar um personagem fictício em cena (mas, ainda assim,
ostentando tamanha autenticidade que lhe foi impossível negar o Oscar 2021 de
Melhor Atriz), Frances segue o filme com a câmera na mão quase a enganchar-se
em seu ombro, registrando tudo o que ela vê e por onde passa (lembra também, e
muito, o estilo obstinadamente realista dos Irmãos Dardenne em “Rosetta”). E
com sua personagem a servir como âncora, uma vasta gama de personagens
coadjuvantes extraídos da mais pura realidade vão assim aparecendo e
espontaneamente fornecendo suas impressões ao filme, vividos não por atores
contratados, orientados, pagos e preparados, mas por pessoas reais que
experimentaram de fato cada um dos exasperos que são relatados (ou sugeridos) na
cena em que se apresentam.
Seguindo a honorável e clássica escola do
neo-realismo à qual pertenceram Roberto Rossellini e outros grandes
realizadores, “Nomadland” é o registro pertinente e frequentemente
impressionante de um recorte do Mundo e da História que, como tantos outros
recortes de momentos emblemáticos da Humanidade, haverá e chocar e espantar
gerações futuras que não tiveram contato com tal acontecimento. Ele traduz tudo
em um viés dramático e poético de difícil apreciação para expectadores
desacostumados a esse cinema menos entretedor e mais esclarecedor.
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